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A Noite das Bruxas

Foto: cortesia 20th Century Studios. © 2023 20th Century Studios. All Rights Reserved.

O primeiro mistério que o espectador precisa desvendar ao conferir A Noite das Bruxas é o motivo que levou os produtores responsáveis pelo retorno de Hercule Poirot aos cinemas a escolher exatamente este livro para ser adaptado. Ele não é um dos mais populares de Agatha Christie, nem um dos mais bem resenhados. Depois de ter trazido o famoso detetive belga de volta em Assassinato no Expresso do Oriente (2017) e Morte no Nilo (2022), ambos remakes, o cineasta Kenneth Branagh aponta sua câmera para uma história inédita nas telonas, apenas adaptada anteriormente no popular seriado da TV britânica, estrelado por David Suchet. A escolha de um livro menos óbvio talvez seja uma vontade de maior liberdade artística. A história de A Noite das Bruxas pega emprestado apenas alguns elementos do livro, algo que seria proibitivo caso o escolhido fosse um clássico absoluto como Os Crimes do ABC, O Assassinato de Roger Ackroyd ou A Casa do Penhasco. Seja qual for a razão, Branagh injeta uma camada sobrenatural aos escritos de Christie que pouco soa como a Dama do Suspense. Como filme, o longa traz vários predicados. Mas como adaptação, deixa bastante a desejar.

O livro foi lançado em 1969, um dos últimos escritos por Christie, que faleceu em 1976. Na versão literária, acompanhamos os acontecimentos de uma festa de Halloween macabra, na qual uma criança de 12 anos é assassinada, afogada em um balde – o mesmo em que as demais convidadas da festa brincavam de caça às maçãs. A escritora de mistério Ariadne Oliver (um alter ego de Agatha Christie, que já havia aparecido em outros romances) estava presente no evento e após o crime, convida seu amigo Hercule Poirot para que ele investigue quem foi o responsável pela morte da jovem Joyce Reynolds – conhecida por seus amigos por ser uma mentirosa de marca maior. Naquela ocasião, a menina havia soltado que tinha presenciado um assassinato e para Poirot, essa revelação fez com que a vida da criança fosse encurtada tragicamente. Agatha Christie não temia incluir em seus romances alguns assassinatos chocantes e, em A Noite das Bruxas, não apenas uma, mas duas crianças são mortas. Dificilmente uma produção com o selo Disney traria algo tão chocante e o longa comandado por Kenneth Branagh foge disso como pode.

Foto: Rob Youngson. © 2023 20th Century Studios. All Rights Reserved.

O roteiro é de Michael Green, o mesmo responsável pelas demais adaptações de Christie nesta nova cinessérie. Como havia feito em A Morte no Nilo, Green coloca Hercule Poirot envolvido no caso desde o início – nos livros, o detetive não está presente quando os assassinatos acontecem, mas é chamado posteriormente para investigar. Se por um lado isso agiliza a narrativa, por outro acaba soando pouco crível e bastante conveniente. A história é ambientada em Veneza (no livro, estamos em Londres), o que traz a beleza da cidade como um belo predicado à trama, com seus históricos edifícios servindo como um bom substituto para as casas mal-assombradas de outrora. Mas estaríamos entrando em uma trama sobrenatural no reino de crimes dos monstros humanos de Agatha Christie?

Hercule Poirot (Branagh) está aposentado e passa seus dias experimentando doces e se esquivando de novos casos. Quem o ajuda a dispensar clientes é o ex-policial Vitale Portfoglio (Riccardo Scamarcio), que não se furta em jogar pessoas no canal de Veneza para deixar seu chefe fora de novos mistérios. Isso muda quando da chegada da amiga de longa data de Poirot, a escritora Ariadne Oliver (Tina Fey). Ela o convida para uma festa de Halloween naquela noite, na qual a presença de uma infame vidente, Joyce Reynolds (Michelle Yeoh), é uma das grandes atrações. O detetive belga não acredita no sobrenatural, mas é instigado por Ariadne a encontrar os segredos desta provável farsante.

Foto: Rob Youngson. © 2023 20th Century Studios. All Rights Reserved.

A anfitriã da festa é a famosa cantora Rowena Drake (Kelly Reilly), que no ano anterior, perdeu a sua filha Alicia (Rowan Robinson) em uma morte misteriosa, aparentemente um suicídio. É na tentativa de se comunicar com o espírito da garota que Rowena convida Reynolds para a festa, para fazer uma sessão espírita. No local, estão a governanta Olga Seminoff (Camille Cottin), o médico Leslie Ferrier (Jamie Dornan) e seu filho precoce Leopold (Jude Hill), o ex-noivo de Alicia, o oportunista Maxime Gerard (Kyle Allen), além dos assistentes de Joyce, Desdemona (Emma Laird) e Nicholas (Ali Khan). Lógico que um assassinato acontece e Poirot precisa descobrir o que aconteceu. O problema é que o detetive está ouvindo vozes e enxergando coisas estranhas, indicando que as assombrações que tanto se falam podem, sim, estar influenciando o ambiente e ajudando na morte destas vítimas.

Como de costume, o elenco que se consegue juntar para adaptações de obras de Agatha Christie é rico em nomes famosos. Verdade que inferior às recentes incursões, mas ainda estrelado, com a recém-vencedora do Oscar Michelle Yeoh, a sempre competente Tina Fey, Jaime Dornan, que tem se mostrado um colaborador interessante para Branagh, principalmente depois de Belfast (2021), a expressiva Kelly Reilly e o talentoso italiano Riccardo Scamarcio, que você talvez lembre do ótimo Loro (2018), de Paolo Sorrentino. Com um cast como esse, difícil que as atuações sejam menos do que o esperado. Kenneth Branagh segue um Hercule Poirot bastante digno, não superior à incrível performance de David Suchet na série televisiva, mas ainda com perspicácia e inteligência suficientes para convencer como o homem famoso por usar suas células cinzentas. Tina Fey imprime sua conhecida eloquência no retrato da astuta escritora Ariadne Oliver, enquanto Michelle Yeoh investe em uma performance etérea, mas performática – algo nada longe das raízes daquela mulher, alguém que precisa vender sua habilidade de se comunicar com o outro mundo.

Foto: Cortesia 20th Century Studios. © 2023 20th Century Studios. All Rights Reserved.

Branagh escolhe filmar A Noite das Bruxas com lentes que distorcem as imagens, utilizadas dentro da casa de Rowena Drake para que sintamos a estranheza daquele ambiente. O efeito funciona em dados momentos, mas quando usado em profusão, causa mais incômodo do que a reação esperada. A direção de arte é bárbara, colocando os personagens em uma verdadeira casa mal-assombrada em plena Veneza, com móveis antigos, paredes sombrias, itens macabros e uma nada envergonhada aura gótica. O cineasta está pronto para nos colocar em uma trama sobrenatural, mesmo que o material original nada tenha a ver com isso. A saída que o roteiro de Michael Green concatena para tanto, funciona, embora possa ser visto como uma traição para quem espera uma história pura de fantasmas.

Para entrar em outros aspectos da trama, é necessário lançar mão de spoilers. Portanto, se você não viu o filme ou não leu o livro, aconselhamos que pare a leitura por aqui. Quem é fã de Agatha Christie provavelmente não tolerará algumas invencionices de Michael Green, lançadas apenas para tirar o espectador da trilha. O fato de Ariadne Oliver se revelar alguém que enganaria Hercule Poirot por conta de um livro é um disparate, visto que a personagem sempre foi uma querida amiga do detetive, alguém que o ajudava em diversos casos e, portanto, uma pessoa fora de suspeitas. Oliver é o alter ego de Agatha Christie nos romances, uma maneira da escritora poder discutir alguns aspectos da arte de conceber suspenses, com ela sendo uma boa fonte de exposição. Ainda que Fey esteja ótima como a personagem, a função deturpada dela na trama é uma lástima. Guardadas as proporções, seria como revelar que Watson traiu Sherlock Holmes em alguma adaptação de uma história clássica escrita por Arthur Conan Doyle.

Foto: Cortesia 20th Century Studios. © 2023 20th Century Studios. All Rights Reserved.

A trama de mistério sobrenatural é resolvida com um veneno alucinógeno, o que é uma ideia interessante – embora o filme deixe a porta aberta para algo realmente fora deste mundo, o que é menos crível, ainda mais ao estarmos dentro do universo de Agatha Christie. A identidade do assassino não difere do livro, ao menos em parte – com personagens cortados, a resolução não poderia ser muito diversa do que vemos. Curiosamente, duas das vítimas do romance acabam vivas (e juntas) no cinema, o que prova que a pasteurização Hollywoodiana não permitiria que uma criança fosse morta – algo que na televisão britânica, em 2011, quando o episódio adaptado foi exibido, não foi problema algum. De qualquer forma, isso não é algo que realmente importe, visto que a trama se distancia dessa questão ao modificar totalmente as relações de vários personagens – Leopold e Joyce são irmãos no romance, enquanto aqui nem se conhecem antes da noite de Halloween, com Reynolds tendo idade para ser avó do menino. Outras vítimas do livro, que mal têm função ativa, ganham mais espaço, mas um destino pouco diferente.

Relativamente curto se comparado aos demais filmes da cinessérie, com apenas 100 minutos, A Noite das Bruxas parece mais uma exigência contratual do que um capítulo memorável do universo da Dama do Suspense. Talvez a Disney corresse o risco de perder os direitos se não lançasse um filme novo até 2023? Lembrando que Morte no Nilo só chegou ao público em 2022 por conta dos atrasos decorrentes da COVID-19, com o longa pronto desde 2019. Portanto, é possível que o estúdio estivesse pendente de algum filme para não perder os direitos e escolheu uma produção que seria menos conturbada. Kenneth Branagh, um diretor competente e criativo, não lançaria qualquer coisa e utilizou sua conhecida maestria para tentar transformar algo com potencial pequeno em uma produção diferenciada. É possível. Pelo esforço, merece elogios. Uma pena, porém, que o DNA de Christie tenha ficado tão distante. E sentir falta disso em uma adaptação de um livro que nem é dos seus melhores só mostra a força do estilo da escritora e sua sombra sempre presente em qualquer material que leve seu nome. Esse é um fantasma do qual Branagh não conseguiria escapar.

Foto: Rob Youngson. © 2023 20th Century Studios. All Rights Reserved.

A NOITE DAS BRUXAS
A HAUNTING IN VENICE
EUA – 103 min – Suspense
Dir.: Kenneth Branagh
Rot.: Michael Green
Com Kenneth Branagh, Kyle Allen, Camille Cottin, Jamie Dornan, Tina Fey, Jude Hill, Ali Khan, Emma Laird, Kelly Reilly, Riccardo
Scamarcio e Michelle Yeoh
Distribuição: Disney
Cotação: 6

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