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Os Rejeitados

Fotos: Seacia Pavao / © 2023 FOCUS FEATURES LLC

Estaríamos testemunhando o nascimento do mais novo clássico natalino? O cineasta Alexander Payne não gosta muito do rótulo, mas difícil não enxergar sua nova dramédia, Os Rejeitados, como um valoroso representante deste quase subgênero. O longa-metragem marca o reencontro do diretor com o ator Paul Giamatti, dupla que entregou o ótimo Sideways: Umas e Outras (2004), e é ambientado exatamente naquelas duas semanas de recesso durante o Natal e o ano novo – mas em 1970, o que deixa tudo ainda mais charmoso. Giamatti brilha intensamente, como poderíamos imaginar. Mas ele não está sozinho, visto que Da’Vine Joy Randolph entrega uma performance que a coloca como uma das principais pretendentes ao Oscar. Isso sem falar na revelação Dominic Sessa, que encara um personagem difícil com maturidade de veterano, mas frescor de novato.

Desde o início, Alexander Payne deixa claro que está buscando um registro de cinema dos anos de 1970. O logo da Universal é o antigo, existe uma tela de restrição de idade da mesma forma que as sessões antigas nos Estados Unidos possuíam, até o copyright do filme está marcado como se a obra fosse de 1971. Os créditos iniciais são mais longos que o usual para a produção atual, mais uma referência ao cinema de outrora. Os riscos na tela e sujeiras clássicas das películas foram inclusos na pós-produção, para dar uma maior aparência do cinema setentista americano.

Mas não é só o visual ou a bela direção de arte que nos remetem aos anos 70. Os próprios personagens têm uma qualidade sessentista/setentista, farinhas do mesmo saco de protagonistas de obras como A Primeira Noite de um Homem (1967), Ensina-me a Viver (1971) ou Lua de Papel (1973). Não à toa, estes foram alguns filmes que Payne exibiu para seu elenco e equipe para que todos entendessem o que ele queria com Os Rejeitados. Alguns destes clássicos eram inéditas para um dos astros da produção, Dominic Sessa, um rapaz cujo talento inato foi descoberto pela diretora de casting Susan Shopmaker em um local ao mesmo tempo ideal e improvável: um colégio interno. Sessa tinha experiência apenas em teatro como uma atividade extracurricular em sua escola. Mas quando fez o teste para o filme, Shopmaker viu no rapaz muito potencial, reconhecido depois por Alexander Payne e seus colegas de elenco.

Na trama, o professor linha-dura Paul Hunham (Giamatti) é o pesadelo dos estudantes da Barton Academy, um colégio interno situado em New England. É o final do ano de 1970 e todos estão com a cabeça nas férias, incluindo o esperto, mas um tanto rebelde aluno Angus Tully (Sessa). O garoto, no entanto, acaba sendo deixado por sua mãe, que está de namorado novo e pretende passar as férias com ele, em vez do filho. Na Barton, é possível passar o período de férias no colégio, desde que um professor fique responsável pelos “rejeitados”. Hunham acaba por ser o escolhido, algo que enxerga como uma punição por ter reprovado um aluno abastado da instituição. Não que ele tivesse planos melhores. Solitário, ostracizado pelos seus colegas e odiado pelos alunos, Paul planejava passar as férias lendo e bebendo – não necessariamente nesta ordem. Mas com essa questão, o professor ficará responsável por cinco jovens que ficaram para trás – incluindo Angus. Paul não é o único adulto, porém. A chefe de cozinha Mary Lamb (Randolph) vai passar as duas semanas na instituição, depois de ter recusado o convite da irmã de comemorar o Natal com a família. Mary passará as primeiras festas de final de ano sem seu filho Curtis. Recém-graduado na Barton, o rapaz precisou se alistar para lutar na Guerra do Vietnã e foi morto em combate. Essas três figuras quebradas se unirão de maneiras inesperadas neste Natal, aprendendo com a angústia alheia como aplacar um pouco da sua própria dor.

Claro que até que exista uma ligação mais forte entre os personagens, muita água passa debaixo da ponte. O roteiro de David Hemingson é sabiamente esperto ao não apressar as evoluções do relacionamento entre Paul e Angus, por exemplo. Aliás, se uma gordura do script pudesse ser aparada, provavelmente seria uma boa diminuir o tempo dos demais alunos rejeitados, que aparecem de início, somem sem deixar vestígios e seu retorno nunca traz a recompensa do tempo investido. É compreensível que Hemingson escreva mais um obstáculo para Angus ultrapassar – ele não só foi abandonado no Natal como quando tem a chance de se divertir em uma viagem junto do seus colegas, é impedido exatamente por sua mãe estar inacessível, vivendo sua melhor vida sem se importar com o garoto. Mas o tempo investido naquela relação com os demais rapazes não parece ser recompensada a contento. De qualquer forma, é o único minúsculo porém em um filme que atinge as notas mais altas possíveis em quase tudo o que se propõe a fazer.

A começar pela ideia de emular a década de 1970. Alexander Payne consegue algo raro, que é produzir uma obra que legitimamente parece ser realizada em outra época. Lógico que essa sensação esvai ao vermos os conhecidos Paul Giamatti e Da’Vine Joy Randolph em tela, afinal de contas, sabemos que são atores contemporâneos. Mas existe um feeling setentista palpável, seja na história – que tem sua doçura, mas também sua agressividade – ou nos personagens vulneráveis, mas afiados como pregos. A trilha sonora ajuda na construção deste cenário, com a inclusão de clássicos de Shocking Blue (Venus), The Chamber Brothers (Time Has Come Today), Allman Brothers Band (In Memory of Elizabeth Reed), Cat Stevens/Yusuf (The Wind), isso sem falar nos standards natalinos que permeiam toda a trilha. Não bastasse isso, Silver Joy, de Damien Jurado, embora seja uma canção de 2014, tem a mesma qualidade anacrônica (no bom sentido) da produção de Payne. Por fim, mas não menos importante, o fato de o filme ser todo ambientado no final do ano, com baixas temperaturas e neve, dá um sentimento de maior solidão e distanciamento, o que conversa totalmente com a trajetória da trinca de personagens central.

Paul Giamatti é um ator interessantíssimo e não é de hoje. Aliás, foi uma lástima tê-lo visto ser esnobado pelo Oscar quando estrelou Sideways, algo que a Academia tentou remediar alguns anos depois ao lembrar de sua boa atuação no inferior A Luta pela Esperança (2006). Por Os Rejeitados, o ator se torna um dos principais postulantes à estatueta, ao lado de Cillian Murphy por Oppenheimer e Jeffrey Wright por American Fiction – isso, claro, se essa trinca confirmar seu favoritismo mostrado nas indicações ao SAG Awards, o prêmio do Sindicato dos Atores. Giamatti abriu bem o ano levando a estatueta de Melhor Ator – Comédia ou Musical no Globo de Ouro, mas o prêmio não serve tanto de termômetro, até por separar os atores nos gêneros cômicos e dramáticos. O professor interpretado por Giamatti é uma figura fácil de odiar, de início, e de ter certa pena no decorrer da trama. Mas o ator consegue fugir das armadilhas de um papel como esse, imprimindo inteligência e muita acidez em suas ações. Com um olho de vidro que sempre muda de posição (e até de órbita, o que é inexplicavelmente lúdico) e um fedor de peixe, culpa de uma condição médica a qual ele tem pouco controle, Paul Hunham é alguém que se acostumou a estar à margem – e descobriremos alguns pontos que explicam ainda mais o porquê dele meio que se esconder naquele emprego.

Já Da’Vine Joy Randolph é uma figura que vem galgando degraus importantes desde que estourou em Meu Nome é Dolemite (2019). Ela encarou com ímpeto e personalidade o difícil papel de Cherise em Alta Fidelidade (2020), vivendo a versão feminina do personagem que transformou a carreira de Jack Black, e sendo um dos melhores elementos daquela adaptação. Depois emendou personagens bons em The Last O.G. (2021) e Only Murders in the Building (2021-), sempre investindo em sua veia cômica. Ao interpretar a enlutada Mary em Os Rejeitados, Randolph prova que seu campo de atuação pode ser muito mais amplo, com uma performance muito contida e realmente tocante. Por fim, mas não menos importante, Dominic Sessa encara um personagem dos mais difíceis. O rapaz esconde muitas verdades a seu respeito e a cada camada desvelada, entendemos melhor o porquê de Angus ser da maneira que é. A partir do momento que ele se abre para Paul e que ambos se enxergam mais iguais perante um ao outro, a relação de amizade passa a servir de âncora para aquela jornada – que não será sem percalços, alguns mais e outros menos previsíveis.

Ao saber ser agridoce na medida e manter a narrativa interessante e em movimento, Os Rejeitados se mostra um filme de primeira, inteligente e sensível. Difícil não sair emocionado com o que enxergamos na tela e inspirados a tentar usar da mesma empatia que os personagens do longa utilizam para entender um ao outro. É bastante provável que veremos este novo longa de Alexander Payne nas principais categorias do Oscar – incluindo Melhor Filme, Diretor, Roteiro, Ator (Giamatti) e Atriz Coadjuvante (Randolph) – e todas elas serão merecidíssimas. Mas urge que a Academia abra os olhos e (re)crie uma categoria que há tempos é necessária: Performance Revelação. Desta forma, seria possível indicar não apenas Sessa, mas tantos outros jovens atores e atrizes que se revelam nomes legitimamente aptos a receber tal menção, mas que hoje são alijados pela tenra idade. Está mais do que na hora desta estatueta voltar a figurar entre as tantas categorias do Oscar. Mas mesmo que a premiação não enxerge as qualidades de Os Rejeitados, algo o filme não escapará, que é a prova do tempo. Em alguns anos, veremos esta obra como um novo clássico. Poucas vezes foi tão fácil prever isso, mas o trabalho primoroso de Alexander Payne consegue nos deixar certos desta futura verdade.

 

OS REJEITADOS
The Holdovers
2023 – EUA – 133 min – Drama, Comédia – 16 anos
Dir.: Alexander Payne
Rot.: David Hemingson
Com Paul Giamatti, Da’Vine Joy Randolph, Dominic Sessa, Carrie Preston, Brady Hepner, Ian Dolley, Jim Kaplan, Michael Provost, Andrew Garman, Naheem Garcia, Stephen Thorne, Gillian Vigman, Darby Lily Lee-Stack e Tate Donovan
Distribuição: Universal
Cotação: 10