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Nosso Sonho

Foto: João Atala

MCs que fizeram grande sucesso na década de 1990 no Brasil, Claudinho e Buchecha tiveram uma jornada impressionante, uma clássica história do talento que sobrepuja as dificuldades, da pobreza à pujança trazida por uma carreira meteórica. Infelizmente, o percurso da dupla foi encurtado com a precoce morte de Claudinho, aos 26 anos, vítima de um acidente de carro durante uma turnê. A dupla foi responsável por popularizar no país o Funk Melody, uma febre tão gigante que mesmo quem não era necessariamente afeito ao estilo acabou conhecendo as músicas do duo – Conquista e Quero te Encontrar dentre os hits que mais reverberaram na época. O cineasta Eduardo Albergaria (de Happy Hour: Verdades e Consequências, 2018) toma para si a responsabilidade de trazer a história de Claudinho e Buchecha para o cinema e, ainda que nem sempre seja feliz na empreitada, consegue entreter o espectador com a simpatia e o carisma da dupla, defendida com entusiasmo por Juan Paiva (Buchecha) e Lucas Penteado (Claudinho).

Algo que chama a atenção logo de início é o fato de a história ser contada sob o ponto de vista de Buchecha. Ele é o narrador da trama, com quem ficamos ao lado o tempo todo – quando vemos Claudinho, ele está junto do protagonista, surgindo apenas através do olhar do seu amigo. Isso é justificável por vários motivos: o primeiro, Claudinho morreu jovem demais e boa parte da sua história, infelizmente, foi junto dele. Seria difícil imaginar o que o rapaz fazia quando não estava junto de Buchecha. Dessa maneira, também é mais compreensível que Claudinho seja visto quase como uma figura mítica. Buchecha menciona que seu amigo o salvou diversas vezes e o compara com um anjo. Essa visão etérea de uma figura de carne-e-osso é mais crível quando o vemos com alguma distância. Por fim, Nosso Sonho se mostra interessado em desenvolver a relação espinhosa entre Buchecha e seu pai, Souza, colocando essa história no centro da cinebiografia, um acerto por dar maior profundidade a ambos os personagens.

Foto: Angelica Goudinho

Na trama, acompanhamos a amizade entre Claudinho e Buchecha desde a infância (nessa época, interpretados por Boca de 09 e Gustavo Coelho, respectivamente). Ambos fãs de soltar pipa e de mergulhar em uma açude em São Gonçalo, onde moravam, os meninos se viam como irmãos e a separação foi sofrida quando Claudinho revelou que se mudaria com a família para o Salgueiro. Buchecha – ou melhor, Claucirlei – seguiu vivendo com sua mãe, Dona Etelma (Tatiana Tiburcio), até a adolescência, se vendo obrigado a deixar a casa por conta do comportamento violento do pai, Souza (Nando Cunha). Mandado por Etelma para morar com a tia Natalina (Flávia Souza) no Salgueiro, o rapaz reencontra seu amigo Claudinho e é batizado com o apelido com que todo o Brasil o conheceria: Buchecha. Tentando pagar as contas como office boy, o jovem é convencido pelo amigo que o seu destino é a música. Avesso primeiramente à ideia por não se achar bonito para ser artista, ele percebe que o caminho pode ser inverso ao ver como sua paixão platônica Rosana (Lellê) se encanta pelos MCs que vê no palco (não muito mais bonitos que ele). O sucesso nos palcos é quase imediato, com a dupla criando suas próprias letras e passos. Mas algo incomoda Buchecha, que não consegue se libertar da relação problemática que tem com o pai. Claudinho tenta ajudá-lo, mas isso é algo que apenas pai e filho poderão resolver.

Algo que a maioria das cinebiografias que se debruçam sobre nomes da música falham é o momento da criação das canções. Alguns filmes simplesmente ignoram o trecho da composição, mostrando as canções prontas no palco ou sendo gravadas em estúdio. Outras, como Bohemian Rhapsody (2018), tentam mostrar que a criação é praticamente um ato divino, com o artista recebendo a inspiração e quase entrando em êxtase ao ver o que criou – a cena em que Freddie Mercury (Rami Malek) compõe a faixa título é uma das mais vergonhosas daquele filme problemático. Em Nosso Sonho, Eduardo Albergaria dedica algum tempo para mostrar as agruras de um jovem inexperiente, mas talentoso, tentando compor sua primeira canção – seja dentro do ônibus ou durante uma pausa no trabalho, não importa. Buchecha precisa escrever algo e busca com o amigo alguma inspiração, com os dois praticamente improvisando algo enquanto estavam dentro do coletivo. É um trecho pequeno, mas que consegue traduzir de maneira crível o momento da criação. A cena da gravação da faixa Nosso Sonho é outro acerto, com o filme revelando a maneira como Claudinho e Buchecha, um tanto sem jeito, encontraram a forma de cantar e interpretar a canção.

Foto: Angelica Goudinho

Até aquele momento, Nosso Sonho se mostrava uma cinebiografia bastante competente, conseguindo mostrar trechos importantes da infância e adolescência dos retratados e se embrenhando na gênese do que viria a ser a dupla. Infelizmente, passado isso, o filme inexplicavelmente dá um salto temporal de dois anos, nos deixando totalmente no escuro a respeito de grandes momentos da vida da dupla, como o lançamento de seus discos e de hits como os citados Conquista e Quero te Encontrar (presentes no primeiro e no segundo álbum do duo, respectivamente). A primeira faixa ainda é ouvida em uma interpretação em violão de Souza, na tentativa de criar um laço com o filho. A segunda surge com destaque no início do filme, durante os créditos, mas não aparece no meio da história. A trama pula direto para Só Love, o terceiro álbum – e ainda cria uma história com uma canção de Lulu Santos que, na verdade, foi gravada anos antes pela dupla, já no primeiro disco. Mudar a temporalidade de alguns eventos é mais comum e não chega a ser um grande problema. Mas a ausência da história por trás de dois grandes hits cheira a um possível novo corte futuro – a Globo Filmes costuma transformar filmes de sucesso em séries televisivas com cenas inéditas, o que explicaria isso. Ainda assim, é um pecado que o filme não abarque esses momentos – o mesmo que fazer uma cinebiografia sobre Chitãozinho e Xororó e não os colocar cantando Evidências.

Outro ponto que chama a atenção é o fato de os atores parecerem invertidos nos papéis. Lucas Penteado tem suas feições mais similares às de Buchecha, por exemplo. E a explicação é mais simples do que podíamos imaginar: o diretor resolveu trocar os personagens no início das filmagens, ao notar que Penteado era mais extrovertido, como Claudinho era, enquanto Juan Paiva se mostrou mais retraído, uma das características do Buchecha real. A semelhança, no fim das contas, não importa tanto. Mais importante é a qualidade das performances, que se mantém bastante alta em todo o longa-metragem. Existe uma boa química entre os dois atores, nos fazendo acreditar na amizade forte entre a dupla. E nos momentos em que precisam cantar ou dançar, a tarefa é executada com perfeição. A narração poderia ser extirpada, é verdade. Em muitos momentos ela surge redundante.

Foto: Angelica Goudinho

Boas sacadas, como inserir os atores em programas de tevê famosos como o Jô Soares Onze e Meia e o programa da Xuxa funcionam bem, dando um sabor da época que poucas produções nacionais costumam fazer. O elenco coadjuvante é bem escalado e Nando Cunha se mostra, cada vez mais, um dos melhores atores de sua geração – não importa se o papel é pequeno ou grande, Cunha se sobressai com cada chance que tem. Espere até vê-lo como Grande Otelo em outra cinebiografia, Mussum: O Filmis, que estreia em novembro no Brasil, na qual ele fica na memória após participar de apenas uma cena. Em Nosso Sonho, o ator tem mais tempo para construir seu personagem e se torna um verdadeiro desafio para o protagonista, um homem que carrega uma dureza no coração que castiga seu filho.

Mesmo com seus problemas, o longa-metragem de Eduardo Albergaria consegue cativar e até emocionar – difícil não sentir o baque ao final da história, um talento se apagando tão cedo, e as ramificações que a morte do artista traz à sua família e amigos. Não é um filme perfeito, mas que pode relembrar aos fãs e aos curiosos um pouco do porquê a dupla fez tanto sucesso na segunda metade dos anos 90. Por fim, impressiona o caráter premonitório dos amigos, que cantaram que sua vida um dia viraria história de cinema, algo que realmente se confirma com este lançamento. Uma pena que “Buchecha sem Claudinho”, da canção Fico Assim sem Você, também acabou se tornando realidade muito mais cedo do que qualquer um poderia imaginar.

Foto: Angelica Goudinho

NOSSO SONHO
BR – 117 min – Drama
Dir.: Eduardo Albergaria
Roteiro: Eduardo Albergaria, Daniel Dias, Mauricio Lissovsky, Fernando Velasco
Com Juan Paiva, Lucas Penteado, Nando Cunha, Tatiana Tiburcio, Lellê, Clara Moneke, Boca de 09, Gustavo Coelho, Antonio Pitanga, Isabela Garcia, Negão da BL, FP do Trem Bala, Flavia Souza
Distribuição: Manequim Filmes
Cotação: 6