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Retratos Fantasmas

Foto: Wilson Carneiro da Cunha

Gramado ama Kleber Mendonça Filho. E é de se imaginar que a recíproca seja verdadeira. Todos os cinco longas-metragens dirigidos pelo cineasta – que começou como crítico de cinema, tendo ele mesmo feito coberturas do festival na serra gaúcha – foram exibidos no Palácio dos Festivais. Seus últimos três longas, inclusive, Aquarius, Bacurau e o novíssimo Retratos Fantasmas foram escolhidos para abrir o evento, fora de concurso. Já virou tradição e é algo que ninguém reclama. Afinal de contas, Kleber se revelou um cineasta dos mais competentes e instigantes, conseguindo concatenar tramas que utilizam muito bem seus personagens nos cenários onde são colocados. Se engana quem pensa que a coisa muda pelo fato de estarmos falando agora de um documentário. Existem muitos personagens em Retratos Fantasmas, a maioria deles, como adianta o título, não mais entre nós. São pessoas, são espaços de cultura, é uma casa, é um centro de uma cidade. A maneira como Kleber Mendonça Filho costura esse longa saudoso e agridoce é um dos grandes predicados de uma produção imperdível para quem se interessa por história e ama cinema.

Retratos Fantasmas é dividido em três partes, mas suas duas primeiras é que realmente tomam conta de um grande naco do filme. No ato 1, conhecemos o apartamento da Setúbal, onde Kleber viveu boa parte de sua vida e, também, no qual filmou diversos de seus filmes. A casa de Bia (Maeve Jinkings), de O Som ao Redor, é esse apartamento, comprado pela mãe de Kleber logo após o divórcio com o marido. O apê de primeiro andar foi totalmente reformado e virou um lar que era a cara de dona Joselice, lugar que ela viveu e cuidou até sua morte precoce, nos anos 90. Kleber utiliza a casa para lembrar da mãe, do seu passado e ainda fazer uma viagem no tempo pelos seus trabalhos. A narração é sempre em primeira pessoa.

No segundo ato, o centro de Recife é a estrela. A decadência do local espelha o que ocorre em outras tantas capitais brasileiras. Mas o foco de Kleber aqui são os cinemas de rua, muito populares no passado. O filme, por ser algo pessoal, recorta a época em que o cineasta era assíduo dos lugares, portanto na metade da década de 70 em diante. Além de mostrar o que acontece aos prédios que abrigavam as salas – muitas delas igrejas ou lojas – o cineasta se debruça em suas memórias da época e em um personagem dos mais adoráveis, um projecionista que passou toda uma vida exibindo filmes e que se viu sem emprego quando do fechamento da sala. Falecido há mais de 20 anos, o homem ressurge na tela de Kleber por conta de gravações de arquivo – ou seja, um outro fantasma dessa história.

Em um primeiro momento, podemos pensar que o fato de Kleber apontar sua câmera para uma realidade do Recife e de salas de cinema que aquela população conheceu poderia limitar o alcance do filme. Mas acontece algo surreal ao assistir a Retratos Fantasmas – principalmente ao se fazer isso dentro de uma sala de cinema: você fica com saudades de estar num espaço daqueles. Não importa se você nasceu em Porto Alegre ou Manaus. Se em algum momento você foi a um cinema de rua em quaisquer das tantas cidades brasileiras, é possível se emocionar e se conectar com aquela história. A degradação do centro de Recife não é muito diferente do que acontece na capital dos gaúchos ou em São Paulo. O grande número de farmácias que abrem, uma ao lado da outra, não é fenômeno exclusivo recifense, mas de todo o Brasil. Kleber faz um filme macro olhando o micro. Faz um trabalho universal ao focar muito no pessoal.

Foto: João Carlos Lacerda

É verdade que pode ser um tanto precoce fazer algo tão autorreferente em apenas seu quinto filme – Fellini que era Fellini começou a fazer isso só no seu trabalho de número oito (e meio), por exemplo. Mas é notável que Kleber lança mão disso por motivos além da vaidade. Para contar aquela história fantasma, era necessário abrir o seu próprio baú de lembranças – e como é um cineasta, que outra forma de fazer isso se não mostrando cenas de seus próprios filmes? O começo do segundo ato – que começa deliciosamente bem com o clássico cantado por Sidney Magal O Meu Sangue Ferve por Você – demora um pouco para engrenar, com a narrativa parecendo um tanto circular. Mas nada que retire o brilho do todo.

Kleber ainda reserva um trecho fantástico para o desfecho, com a participação de um taxista muito especial – mas não revelaremos o que acontece, para não estragar a surpresa. É um pequeno trecho de fantasia em um filme que foca na realidade atual de espaços que nos fazem sonhar. Não é à toa que Retratos Fantasmas tem sido convidado para muitos festivais – foi exibido em Cannes em maio e tem ainda alguns outros compromissos pela frente – mas o público brasileiro pode ficar tranquilo que a estreia nacional chegou no dia 24 de agosto.

RETRATOS FANTASMAS
BR – Documentário – 93 min
Direção e Roteiro: Kleber Mendonça Filho
Distribuição: Vitrine Filmes
Cotação: 9

O texto sobre Retratos Fantasmas faz parte da nossa cobertura do 51º Festival de Cinema de Gramado. Leia nossa revista digital no link.

Ouça o Almanacast Especial Festival de Cinema de Gramado 2023 #1, com participação do diretor Kleber Mendonça Filho, no Spotify!