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Depois de Ser Cinza

Fotos: Leonardo Maestrelli

Um mar cristalino nos é apresentado de início. Vemos um rapaz se banhando, mas seu cenho não transmite o prazer que esperaríamos de alguém numa paisagem daquelas. A trilha sonora nos comunica que algo está errado. Não estamos vendo um homem de férias, se divertindo naquele cenário. Existe uma dor que ainda não entendemos qual é. Mas em breve, mergulharemos nela. Depois de Ser Cinza, dirigido por Eduardo Wannmacher (em sua estreia em longas-metragens) e roteirizado por Léo Garcia (de Legalidade, 2019), conta a história deste sujeito, Raul (vivido por João Campos), através do olhar de três mulheres que se relacionaram profundamente com ele, Isabel (Elisa Volpatto), Suzy (Branca Messina) e Manuela (Sílvia Lourenço). Narrativamente estimulante ao quebrar a linearidade da história, com personagens humanos, falhos, que nos desvelam suas verdades paulatinamente, o longa-metragem é um drama competente que tem tudo para envolver o espectador em seus esguios 98 minutos de duração.

Quem assiste a Depois de Ser Cinza em sua estreia, talvez não imagine o tempo de maturação entre a ideia original e sua estreia comercial nos cinemas brasileiros. Mas se o espectador ficar até o final dos créditos, algumas informações lhe saltarão aos olhos, como o fato de ter recebido o prêmio para desenvolvimento de projetos do Santander Cultural e da prefeitura de Porto Alegre em 2009, o que coloca a gênese do projeto há mais de 15 anos – levando-se em conta que a ideia da trama surgiu antes. Em 2012, o roteiro participou de um laboratório do Festival Adaptação, no Rio de Janeiro. Cinco anos depois, em 2017, foram realizadas as filmagens em Porto Alegre e em três cidades da Croácia (Zagreb, Zadar e Dubrovnik). A pós-produção logicamente toma um tempo considerável, mas uma pandemia no meio do caminho também não ajudou a acelerar o lançamento do longa, que ainda precisava de recursos para ser viabilizado. Felizmente, o trabalho dispendido por toda a equipe durante todo esse tempo resultou positivo.

A trama é dividida em três pontos de vista distintos, protagonizados por cada uma das mulheres que cruzaram e impactaram o caminho de Raul. Isabel é a primeira. Ela mora na Croácia e está empacotando as coisas para fugir de onde mora. Em um hotel, conhece Raul – a surpresa de encontrar outro brasileiro perdido no meio daquele país não passa despercebida por ambos. A conversa dos dois é truncada, o rapaz revela pouco sobre si – diz ser um antropólogo em uma conferência na Alemanha – e nem lembra de perguntar muito a respeito da mulher que está à sua frente. No dia seguinte, ele partirá para uma viagem distante, até Dubrovnik, e Isabel consegue uma carona usando o subterfúgio de encontrar uma amiga no meio do caminho. Ela não estava sendo sincera, muito menos ele. No meio da estrada, a frase “espero que não tenha machucado ninguém” vinda da moça tira Raul do prumo.

Suzy é a segunda, embora tenha vindo antes na vida do rapaz. Os dois se conheceram na faculdade, são amigos chegados e ele tem uma queda gigante por ela, nunca confessada. A jovem acabou de perder o pai, um pesquisador, e essa lacuna em sua vida parece ser difícil de ser preenchida. Suzy tenta se amortecer com drogas, bebidas e festas. Mas nada lhe traz verdadeira alegria. Raul tenta ajudá-la como pode, mas ele mesmo está passando por problemas – ataques de ansiedade cada vez mais frequentes o tem deixado fora de combate, a ponto de procurar ajuda profissional. Abusando cada vez mais de entorpecentes, Suzy tomba em uma festa.

Manuela é a terceira. Terapeuta, está tentando ajudar Raul a descobrir as raízes de seus ataques de ansiedade. Na vida pessoal, ela procura por prazer imediato, sem ligações emocionais que atrapalhem sua vida. Vemos ela observando de longe um homem e sua filha – algo que descobriremos mais tarde, tem grande importância para o estado de espírito dela naquele momento. Prima de uma amiga de Raul, os dois acabam se encontrando socialmente, algo que Manuela tenta cortar na raiz. Depois desta apresentação das três protagonistas femininas, acompanhamos o desenrolar destas histórias e como elas se entrelaçam.

Embora pareça que tenhamos contado demais sobre a trama, essa sinopse dá conta apenas dos primeiros segmentos em que cada uma das atrizes participa. Muito mais acontece em Depois de Ser Cinza, um filme que instiga ao nos apresentar quatro protagonistas bem desenvolvidos, um deles desvelado através do olhar das outras três. Raul inexiste no filme sem suas parceiras de tela. A única cena em que vemos ele sozinho é a que abre o filme – e descobriremos no decorrer que ele não estava tão isolado quanto imaginávamos. Agora, para conseguirmos entrar em detalhes mais específicos da história, alguns spoilers precisarão entrar no caminho. Portanto, siga o texto por sua conta e risco.

Eduardo Wannmacher acerta ao dar liberdade ao elenco para tomar para si o script de Léo Garcia e transformá-lo em algo seu. Desta forma, o texto soa muito mais natural. E também permitiu com que as atrizes pudessem incluir seu olhar e molho em uma trama que é, ainda que sob a ótica feminina, contada por homens. A maneira como os diálogos são encenados, no entanto, nem sempre funciona. Dramas intimistas costumam trazer conversas em que os silêncios tendem a dizer mais do que as palavras. Aqui, no entanto, o tempo que Raul leva para responder a algumas questões soa mais como um cacoete do gênero do que algo orgânico. Isso, se não se traduz muito verdadeiro em uma produção que busca o naturalismo, ao menos ajuda em outra frente, nos mostrando a clara desconexão entre o rapaz e Isabel. Poucos primeiros encontros surgem tão truncados como o da dupla – ele claramente não quer conversar ou conhecer alguém, ela tenta preencher vazios e usar seu novo conhecido para escapar daquele lugar. A química entre Raul e Isabel só começa a aparecer quando ambos passam a ser mais verdadeiros um com o outro, quando as defesas dos dois parecem dar uma trégua. Mas isso já depois de um bom caminho andado.

As duas outras mulheres da vida de Raul são fogo e água. Suzy – que carregava para lá e para cá o isqueiro do pai, objeto que depois é confiado ao rapaz – é aquela paixão arrebatadora, que lhe tira o sono. É uma mulher que consegue juntar os cacos de sua vida e buscar a reconexão com o pai através de resquícios de um trabalho inacabado, como se aguardasse para ser finalizado. Ela abandona a tudo e a todos por essa ligação afetiva etérea, algo que Raul não tem maturidade emocional para entender. A dor deste rompimento talvez seja maior por interromper algo que recém começava a acontecer – finalmente uma resposta positiva de Suzy para uma relação amorosa. Já Manuela – que nos é apresentada e passa um bom tempo na piscina, além de inspirar um encontro entre Raul e o mar – é uma presença mais plácida na vida de Raul. Ela não representa aquele turbilhão de Suzy, estando em uma espectro mais pacífico. Manuela carrega seus problemas e algumas de suas ações são questionáveis – se envolver com um paciente, mesmo lhe repassando para outro profissional antes – mas é notável que ela consegue evoluir a ponto de se sentir feliz neste novo momento. Isabel acaba se tornando talvez uma mistura entre esses dois elementos – fogo e água – ela mesmo tendo ficado com o isqueiro por um tempo, mas salvando Raul quando este estava junto do mar.

As protagonistas femininas têm uma característica em comum que é a fuga – a primeira some da vista de alguém com quem viveu algo infeliz na Croácia; a segunda, através das drogas que a amortecem; a terceira, tem o sexo como escape. Mas todas são agentes de seu próprio destino assim que assumem para si as rédeas da situação – algo que Raul não compartilha com suas parceiras. O rapaz é menos decidido, o que é facilmente observado pela sua paixão disfarçada de amizade com Suzy. Há quanto tempo ele vivia com aquele sentimento, sem nunca se expressar? Com Manuela, ela é quem decide dar o primeiro passo, assim como Isabel, que acaba seguindo o rapaz depois de ser abandonada no meio do caminho. Quando Raul decide agir, seu ato traz o prazer imediato, mas uma dor excruciante posterior, um sentimento de culpa avassalador que ele nunca poderia imaginar que sentiria.

São quase 100 minutos muito bem aproveitados por Wannmacher, que utiliza todas as cenas para comunicar algo para seu espectador – não existem barrigas na trama ou trechos que não estejam ali para dizer algo importante. As filmagens na Croácia – algo inusitado para um filme nacional com orçamento limitado – dão valor de produção enorme ao filme. Difícil seria dar aquele sabor internacional à obra fosse ela realizada no Brasil, de maneira maquiada, ou mesmo em um país vizinho. A fotografia de Leonardo Maestrelli captura as paisagens tanto das cidades croatas quanto de Porto Alegre sem querer ser cartão postal. Existem imagens belas, claro, mas cotejadas com os dramas dos personagens acabam ficando em segundo plano – como é o caso do belo mar que surge no começo e fim da trama, que não está ali para vender o cenário, mas para expressar um sentimento intenso do protagonista. Para quem é de Porto Alegre, vai reconhecer alguns dos nossos espaços – como o Túnel da Conceição, a Rodoviária ou a avenida Castello Branco – mas isso nunca é colocado de maneira a distrair. Estamos no Rio Grande do Sul, mas a história poderia se desenrolar em qualquer cidade brasileira. Já a Croácia serve para outro fim. Fosse na França, Alemanha ou Uruguai, o resultado seria diferente. O que une dois dos personagens centrais da trama é exatamente a improbabilidade de encontrar outro brasileiro perdido naquele país. Se Porto Alegre poderia ser qualquer cidade, poucas poderiam ser Dubrovnik. Por fim, a montagem de Bruno Carboni serve bem à trama, nos embrenhando em uma narrativa não linear que nunca surge confusa. Como nenhuma das mulheres invade a narrativa da outra e Raul inexiste sem elas, fica fácil entender em que momento se passa a história. Algumas surpresas que nos são desveladas no desfecho funcionam como aquela peça de quebra-cabeça que falta no todo, encaixando sem problemas.

Premiado como Melhor Longa Nacional na 3ª edição do Festival de Cinema de Alter do Chão, em Santarém, no Amazonas, Depois de Ser Cinza encerra uma jornada de mais de 15 anos finalmente chegando ao público e em uma semana especial para o cinema produzido no Rio Grande do Sul. A rara estreia de três longas de ficção realizados por produtoras gaúchas no mesmo dia é daqueles eventos para guardar no calendário. Casa Vazia e Despedida se juntam a Depois de Ser Cinza nesta data especial, com o Festival de Gramado se avizinhando e a estreia de outra produção gaúcha, O Acidente, marcada para 24 de agosto, o mês surge como riquíssimo para o cinema do sul do Brasil.

 

DEPOIS DE SER CINZA
BR – 98 min – Drama
Dir.: Eduardo Wannmacher
Rot.: Leo Garcia
Com Elisa Volpatto, Branca Messina, Silvia Lourenço e João Campos
Distribuição: Vitrine Filmes/Boulevard Filmes
Cotação: 8