De um cineasta praticamente infalível, empilhando títulos brilhantes como Amnésia (2000), Insônia (2002), Batman Begins (2005), O Grande Truque (2006), Batman: O Cavaleiro das Trevas (2008) e A Origem (2010) no espaço de uma década, Christopher Nolan já não goza da mesma mira certeira. Nos últimos anos, entregou filmes que deixaram a desejar, como Batman: O Cavaleiro das Trevas Ressurge (2012) e Dunkirk (2017), ou que simplesmente não conseguiam chegar às pretensões mirabolantes de seu diretor, como Interestelar (2014) e Tenet (2020). Os admiradores (eu incluso), acostumados a abraçar com gosto a expressão In Nolan We Trust, talvez não tivessem mais tanta certeza do bordão. A boa notícia é que Oppenheimer consegue entregar algo tão impactante quanto o diretor gostaria, se mostrando um programa intenso e envolvente a respeito do chamado pai da bomba nuclear.
Querendo novamente salvar o cinema, algo que tentou fazer de maneira precoce com seu esquecível Tenet em plena pandemia, Nolan preparou um longa-metragem desenhado para ser visto na tela grande, com o melhor sistema de som possível. Filmou em IMAX – e ainda encomendou filmes em preto e branco específicos para a câmera de grande formato, algo que a Kodak precisou criar. Como diretor de fotografia, convidou seu parceiro contumaz Hoyte van Hoytema e para a montagem desta cinebiografia, recorreu à montadora de Tenet, Jennifer Lame. No elenco, alguns nomes que já haviam trabalhado com o cineasta anteriormente, como Cillian Murphy (um dos seus mais recorrentes colaboradores, pela primeira vez assumindo o protagonismo), Matt Damon (de Interestelar), Kenneth Branagh (de Dunkirk e Tenet), entre vários outros. Novidades bem-vindas são somadas como Emily Blunt, Florence Pugh, Josh Hartnett, Jack Quaid, Dane Deehan e Robert Downey Jr.
Na trama, acompanhamos a trajetória de uma das mais brilhantes mentes da Física, o doutor J. Robert Oppenheimer (Murphy). Tendo iniciado a carreira com dificuldades em laboratórios, o jovem recebe uma dica preciosa do respeitado físico Niels Bohr (Branagh), lhe sugerindo que procurasse por estudos teóricos. Isso transforma a vida de Oppenheimer, que passa a se dedicar a estudar física quântica e nuclear, o tornando um nome interessante a ser escolhido pelo governo americano para encabeçar um novo projeto bélico. Comandado pelo general Leslie Groves (Damon), Oppenheimer se torna o cabeça dos laboratórios em Los Alamos que conceberam a bomba atômica dentro do Projeto Manhattan, que visava conceber uma arma capaz de ganhar a guerra contra os alemães.
Em outro segmento, filmado em preto e branco, acompanhamos as sessões de aprovação do empresário Lewis Strauss (Downey Jr.) a um cargo importante na Casa Branca. Costurado a isso, vemos Oppenheimer, assim como outros cientistas e figuras que trabalharam ao seu lado durante o Projeto Manhattan, sendo entrevistados por uma comissão apontada para renovar (ou não) as credenciais de segurança do cientista. Além de sua vida profissional, acompanhamos (brevemente) a vida pessoal de Oppenheimer, seu passado comunista, seu romance (e caso) com a engajada Jean Tatlock (Pugh), seu casamento longevo com Katherine (Blunt) e seu relacionamento com amigos mais próximos, como Rabi (David Krumholtz) e Chevalier (Jefferson Hall). Encontros com nomes reconhecidos como o físico Albert Einstein (Tom Conti) e o presidente dos Estados Unidos Harry Truman (Gary Oldman) estão no roteiro.
Lógico que por ser um filme com a assinatura de Nolan, suas marcas registradas e vícios estão presentes. Portanto, não espere sutilezas ou uma trama linear. O cineasta adora fazer roteiros grandiosos e aparentemente complicados, com muito diálogo expositivo, o que é uma verdade em Oppenheimer. O que deixa este trabalho menos prejudicado por estes vícios é o fato de a própria história acabar pedindo por mais informações. Em A Origem, talvez um dos melhores filmes de Nolan (se não o melhor), o cineasta precisou se debruçar em uma complicada construção de mundo para fazer com que o espectador ficasse inserido naquele universo onírico. Aqui, ele tem uma tarefa parecida, mas com algo mais pé-no-chão. Não espere aulas de Física na sessão, mas Nolan sabe que precisa fazer com que seu espectador entenda o mínimo dos bastidores do ramo científico para nos contar aquela história. Ele é cuidadoso nisso, embora talvez seu zelo em ser compreendido o leve ao exagero, como piscar a imagem de algum personagem citado, como se o espectador não conseguisse lembrar de quem a pessoa falava. É verdade que são muitos papéis e a estratégia ajuda que fique mais difícil o espectador se perder. Mas essas informações mais mastigadas podem incomodar.
Narrativamente, Oppenheimer mantém nosso interesse sempre em alta, principalmente ao se debruçar no Projeto Manhattan e na forma como os cientistas trabalhavam em Los Alamos. De novo, não espere entender o que se passa naqueles quadros negros ou em alguns trechos das conversas. Nolan acaba nem se atendo tanto a isso, mais preocupado com as relações humanas dentro daquele ambiente. Como as ideias eram divididas, como os egos se chocavam, se era possível confiar mesmo em todos que lá estavam. Existe essa aura de mistério na trama que se desvela aos poucos nos trechos em preto e branco. Se você não conhece a história real em que o filme é baseado, melhor não seguir o texto por conta dos spoilers. O personagem de Robert Downey Jr. é apresentado primeiramente como um sujeito simpático, agindo pelo bem da ciência. Sim, ele se mostra um tanto egocêntrico, mas nada que nos fizesse prever o que acontece no decorrer. Strauss é revelado ser um sujeito manipulador e impelido por um desejo de vingança por conta de, primeiramente, um mal-entendido e, depois, por uma humilhação que sofreu de Oppenheimer. A escalação de Downey Jr. é certeira por fazer com que primeiro simpatizemos com Strauss (são anos e anos do ator vivendo um herói adorado nos cinemas) para, depois, a revelação chocar o público – de novo, apenas quem não conhece a história terá essa surpresa, logicamente.
Cillian Murphy está muito correto como o personagem título, com a difícil tarefa de levar um peso enorme nas costas. Ele, afinal de contas, é um dos responsáveis pela criação da bomba atômica, um aparato que causou a morte de aproximadamente 200 mil pessoas – desde a explosão das duas bombas, em Hiroshima e Nagasaki, até as baixas que aconteceram meses depois por conta da radiação. O cientista não apertou o botão ou ordenou que ela fosse detonada no Japão. Mas o sentimento de culpa, o peso da morte, é reconhecível no olhar perdido de Murphy nas cenas ambientadas após a guerra.
O roteiro de Nolan, algumas vezes, tenta passar o pano para Oppenheimer, colocando na boca de personagens ao seu lado informações que o desculpassem. É o que ocorre na cena em que o cientista decide entregar seu filho recém-nascido aos cuidados de um amigo – “Você tem muita coisa na cabeça e responsabilidades para ainda cuidar de um bebê”, lhe teria dito Chevalier. O massacre em ambas as cidades japonesas não aparece no filme, algo provavelmente pensado para não pesar a percepção do público negativamente para cima do protagonista. Sobre isso, o presidente Harry Truman, em uma ponta bem sacada de Gary Oldman, assume a responsabilidade pelas mortes – “Você acha que os japoneses se importam com quem criou a bomba? Eles querem saber quem mandou ela ser detonada. E fui eu”, telegrafa o presidente. Em uma época em que a caça comunista parece ter anacronicamente voltado ao nosso cotidiano, Nolan também faz de um tudo para mostrar que Oppie não era vermelho, mesmo que simpatizasse com as ideias e que utilizasse os meios comunistas para fazer com o dinheiro chegasse aonde precisava chegar.
A construção sonora de Oppenheimer é impressionante, com o cinema vibrando em diversos momentos durante a sessão. A música de Ludwig Göransson – conhecido pelo tema de The Mandalorian (2019) e pelo seu Oscar em Pantera Negra (2018) – é utilizada muitas vezes para criar uma atmosfera opressora. Em dados momentos, estamos na cabeça de Oppenheimer, observando o que ele imagina, ouvindo o que ele pensa. Nesses trechos, a música se torna onipresente e reverberante. Quando o teste da bomba acontece, a edição de som nos retira tudo em volta, nos deixando apenas com o som da respiração dos personagens e suas expressões. Por fim, o estrondo da explosão nos encontra como um soco. É forte e, por isso, o filme é mais bem aproveitado em uma sala com bom equipamento. No terceiro ato, o efeito é repetido, mas com as palmas dando lugar ao silêncio da mente de Oppenheimer.
Nolan faz questão de ter um elenco cheio de nomes reconhecidos, mesmo que sejam utilizados em pontas com falas mínimas. Talvez o exemplo mais curioso seja o de Rami Malek, que aparece em três cenas – as duas primeiras, sem fala alguma – para depois surgir com certo destaque no terceiro ato. Mas a cada novo capítulo na vida de Oppenheimer, temos aquele sentimento de “já vi esse ator ou atriz antes” dada a quantidade de faces conhecidas e do número de personagens que Nolan inclui na história. São três horas de duração, mas muito bem utilizadas e com a quebra cronológica ajudando na construção de certo suspense, ainda que não seja muito didática. Se você não sabe muito bem as datas em que os acontecimentos reais se deram, capaz de ficar perdido.
Lançado no mesmo dia de Barbie, de Greta Gerwig, mas com uma temática mais séria e menos sessões diárias, Oppenheimer está fadado a perder a batalha monetária – mas isso não chega a ser uma derrota para a Universal. O marketing e a “rivalidade” entre as duas produções acabou ajudando o filme a ganhar maior notoriedade. Não é sempre, afinal de contas, que uma biografia sobre um físico renomado se mostra com potencial para arrecadar milhões nas bilheterias. A junção de um nome forte como Christopher Nolan e uma campanha que soube utilizar os memes da internet podem fazer com que esse retrato do pai da bomba atômica se mostre uma força considerável. Para o Oscar, a categoria Melhor Som é uma certeza de indicação, com outras tantas técnicas com bom potencial.
OPPENHEIMER
EUA/UK – 180 min – Drama
Dir. e Rot.: Christopher Nolan
Com Cillian Murphy, Emily Blunt, Matt Damon, Robert Downey Jr., Florence Pugh, Josh Hartnett, Casey Affleck, Rami Malek, Kenneth Branagh, Benny Safdie, Dylan Arnold, Gustaf Skarsgard, Tom Conti, Dane DeHaan, Alden Ehrenreich, David Krumholtz, Jack Quaid, Josh Peck, Danny Defferari, Jefferson Hall, Jason Clarke, James D’Arcy, Tony Goldwyn, Devon Bostick, Matthew Modine, Emma Dumont, Gary Oldman, Olivia Thrilby, Alex Wolff, Scott Grimes, Josh Zuckerman, James Remar
Cotação: 8