Vida em plástico, é fantástico. A banda dinamarquesa Aqua fez sucesso nos anos 90 com a canção Barbie Girl, que dava um spin diferente na clássica boneca da Mattel – e chegou a ser processada pela fabricante por utilizar o nome do brinquedo (com a justiça dando razão à banda por se tratar de uma óbvia paródia). Passaram-se quase 25 anos do hit musical e a Mattel parece ter desenvolvido algum senso de humor com o passar do tempo. Isso porque o que Greta Gerwig concatena no colorido e autorreferente longa-metragem Barbie provavelmente seria visto com maus olhos em um passado recente. Felizmente, os tempos são outros e conseguir rir de si mesmo é um predicado muito bem-visto. Como a megacampanha publicitária do filme colocou nos trailers e cartazes, Barbie é para quem ama e para quem odeia a boneca. Logicamente com uma vantagem para o primeiro grupo, mas com o suficiente para quem sempre desdenhou enxergar suas qualidades.
Margot Robbie (vista recentemente em Babilônia, 2022) parece ter nascido para viver a Barbie estereotipada – como ela mesma diz no filme, é o visual que você pensa ao fechar os olhos e ouvir o nome da boneca. Produtora do longa, Robbie procurou uma cineasta que pudesse entregar algo especial com a marca e encontrou em Greta Gerwig a pessoa perfeita para tanto. A esperteza do seu roteiro, escrito ao lado de seu companheiro Noah Baumbach, é incluir as diversas facetas da personagem e de seu eterno parceiro Ken, construindo um mundo de possibilidades para a trama. Ao abraçar a diversidade – algo que a própria marca fez, mesmo que de maneira um tanto atrasada – o longa-metragem acerta na mensagem. Quem for ao cinema para se divertir com uma história colorida e cheia de referências ao universo Barbie, certamente vai sair satisfeito. Mas vai se surpreender com uma trama mais profunda, existencialista, que critica não só o mundo de faz de conta da boneca, mas nosso mundo cheio de injustiças e preconceitos de gênero. Parece pesado? Não se preocupe, pois Gerwig soube equilibrar cada um de seus sopapos com senso de humor fino e irresistível.
Na trama, Barbie se diverte em sua casa dos sonhos, sempre acompanhada de suas amigas, a grande maioria chamada Barbie. Cada uma delas tem uma profissão diferente, com direito à presidente (Issa Rae), doutora (Hari Nef), escritora (Alexandra Shipp), advogada (Sharon Rooney), jornalista (Ritu Arya), entre várias outras. Ao seu lado, Ken (Ryan Gosling) costuma se dobrar para conseguir a atenção da namorada e tem uma competição pouco amistosa com os demais Ken – principalmente o vivido por Simu Liu, um de seus principais rivais pela atenção das Barbies. Certo dia, enquanto curtia uma festa com sua turma, a loira divide com seus amigos um pensamento pouco divertido: “Vocês já pensaram na morte?”. A questão dá uma murchada na festa, mas a moça rapidamente muda de assunto e segue se divertindo. No dia seguinte, no entanto, tudo o que acontecia de modo mágico e perfeito passa a não funcionar. O pior dos problemas, que leva Barbie a duvidar de tudo o que sabe da vida, é o fato de seus pés não mais estarem arqueados, com seus calcanhares tocando o chão pela primeira vez na vida.
As Barbies aconselham a loira a procurar a Barbie Estranha (Kate McKinnon), que costuma saber os mistérios da vida – e sua aparência com cabelo repicado e rosto pintado revelam que a boneca foi protagonista de muitas brincadeiras. No encontro, a Estranha revela à Barbie que existem dois mundos, com o real sendo habitado por crianças que costumam brincar com as bonecas. Para entender melhor o que se passa e conseguir voltar à sua existência normal, Barbie terá de visitar o mundo real e encontrar a menina que estava brincando com ela e que está em crise. Ken se junta à essa jornada e descobre um mundo diferente do que está acostumado, com os homens mandando em tudo. Barbie, por sua vez, conhece Sasha (Ariana Greenblatt), a menina que estaria brincando com ela e que deveria ser salva. Ao conversar com ela, Barbie descobre que as garotas não são fãs da boneca – muito pelo contrário, criticando a postura e a mensagem daquele símbolo do corpo perfeito e inalcançável. Descobrimos mais tarde que quem, na verdade, estava brincando com a boneca era a mãe de Sasha, Gloria (America Ferrera), uma funcionária da Mattel saudosa da sua relação mais próxima com a filha. Por falar na empresa, o dono (Will Ferrell) e seus sócios descobrem que existe uma Barbie de carne-e-osso perambulando pelo nosso mundo e precisam pará-la antes que isso vire um pesadelo de relações públicas.
Para a legião de fãs de Barbie, o filme é uma verdadeira avalanche de referências. Personagens obscuros aparecem (com a narração feita pela eterna rainha Helen Mirren pontuando a descontinuação de algumas figuras), figurinos famosos ganham o corpo de Margot Robbie e das demais atrizes. O primeiro modelito da boneca, quando ela foi lançada em 1959, o maiô zebrado, é a roupa com que Robbie aparece em destaque em sua primeira cena – em uma referência divertidíssima a 2001: Uma Odisseia no Espaço (1967), de Stanley Kubrick. Gerwig e sua equipe foram muito respeitosos com o símbolo, tomando diversos cuidados para que a boneca surgisse da melhor forma possível em seu filme. Da mesma forma, a cineasta não economiza nas críticas que Barbie sempre teve e inclui na história, não apenas como um mea culpa, mas como algo que leva a história para a frente. Sob a ótica das Barbies na Barbieland, as mudanças que a boneca sofreu teriam sido abraçadas pelo mundo, modificando e melhorando a vida das meninas. Não foi o que aconteceu, obviamente, embora a inclusão tenha sido bastante saudável. O filme consegue trabalhar muito bem a mensagem e ainda ter duas jornadas femininas interessantes – o amadurecimento da Barbie estereotipada, que aprende a ser mais segura e dona de seu destino; e a relação mãe e filha, estremecida por conta do afastamento muitas vezes natural quando uma criança se torna adolescente.
O trailer já revelava muitos dos desdobramentos aqui relatados, mas felizmente não entregava algumas das reviravoltas imprevisíveis que a história guarda para os espectadores. A partir deste parágrafo, falaremos sobre isso, portanto abandone aqui o texto caso não queira saber spoilers. Um dos trechos mais inusitados – e uma boa surpresa do roteiro de Gerwig – é a maneira como o patriarcado é encaixado na história. Ken se maravilha ao ver que, fora da Barbieland, o mundo é dos homens. Ele deseja replicar isso em sua casa e consegue reverter a cabeça de quase todas as Barbies. A vivida por Margot Robbie fica fora desse feitiço e luta para que sua casa dos sonhos retorne à forma original.
Existe muita coisa para desempacotar nesse terceiro ato. Primeiro, o discurso entregue com muita energia por America Ferrera, falando algumas verdades sobre ser mulher no século XXI. É um discurso que para uma plateia mais madura não traz novidades, mas é brilhante por apontar seu foco para as bonecas, que vivem em um mundo de fantasia, com as Barbies sendo, na verdade, figuras que representam a plateia mais jovem que vai procurar o filme. Crianças, pré-adolescentes e adolescentes tendem, através do filme, a conhecer uma realidade feminina que pode ser desconhecida. A mensagem não serve apenas para as meninas, mas para os garotos também. Entender o que o outro passa é importantíssimo para que mudanças ocorram. Segundo: a maneira como Ken se torna um antagonista egoísta é bárbaro por mostrar o lado nocivo da masculinidade frágil. Impossível ver o que os Ken realizam naquele lugar e não pensar que está tudo errado. O roteiro é hábil em dar um motivo para a revolta do boneco e até uma canção é executada para deixar essa virada menos brutal – o número musical coloridíssimo, que se torna uma coreografia com cores básicas, com os bonecos vestindo roupas combinando é um belo tributo aos musicais do passado.
Por fim, mostrando o lado conciliador da mulher, a Barbie estereotipada acaba se desculpando com Ken, notando que ela sempre tomou como garantido o amor dele, nunca dando muita bola para seus sentimentos. Pode soar um sinal de fraqueza ou inocência que depois de tudo o que aquele homem fez em Barbieland, que a própria Barbie pedisse desculpas. Mas isso só mostra a maturidade da personagem, que consegue enxergar em suas próprias ações problemas que deseja melhorar. Não justifica as ações de Ken, mas ao estender a mão para seu namorado e perdoá-lo pelos seus atos, a boneca se tornou um pouco mais mulher – com os ônus e bônus que vem com esse território.
Margot Robbie parece se divertir ao interpretar a boneca, conseguindo ir além do sorriso sempre presente e dos olhos cheios de vida. A Barbie de Robbie chora, se decepciona, tem dúvidas. É um retrato muito mais profundo do que poderia se imaginar em um primeiro momento. O Ken de Ryan Gosling quase rouba a cena, com o ator estando muito à vontade na pele de alguém com pouco conteúdo, mas com carisma de sobra. Suas rusgas com Simu Liu são alguns dos melhores momentos da trama. Will Ferrell consegue arrancar algumas risadas, assim como Michael Cera vivendo o incompreendido Allan. Do elenco feminino, Kate McKinnon e Issa Rae são sempre interessantes, embora ganhem menos do que poderiam. America Ferrera é o principal nome depois de Margot Robbie e não se furta em aproveitar o holofote ao viver uma mulher real, apaixonada pelas bonecas e por sua história. Sua relação com a filha é um dos trechos mais emotivos e a dobradinha com Ariana Greenblatt funciona.
Falar de Barbie e não comentar sobre a direção de arte seria uma loucura. Greta Gerwig coloca Sarah Greenwood (indicada seis vezes ao Oscar, uma delas por A Bela e a Fera, 2018) como a responsável pelo Desenho de Produção e o trabalho é simplesmente fabuloso. Colorido como poucos filmes têm direito de ser, com cenários intencionalmente falsos, mas táteis, Greenwood cria um mundo de sonhos palpável, cheio de referências aos brinquedos da coleção. No mundo real, a ideia parece ser replicar um pouco do surreal, principalmente no prédio da Mattel, com cubículos simétricos e sem muita cor, uma sala de reuniões imaginativa, e andares que podem surpreender pela aparição de pessoas do passado – como a própria criadora da Barbie, Ruth Handler (Rhea Perlman). Não daria para criar o nosso mundo muito firme na realidade quando temos uma Barbie de carne-e-osso andando entre nós, afinal de contas.
Com boas piadas e comandado de maneira muito criativa por Greta Gerwig, Barbie é um sucesso em muitas frentes. Consegue manter o reposicionamento da marca e expandi-lo, sem soar como um produto mercadológico apenas. Traz mensagens importantes em uma roupagem pop e divertida. Conversa com diversos públicos, se tornando um programa para a família toda. E se mostra um fenômeno cultural ao estar na boca do povo desde que os primeiros previews surgiram na internet e nos cinemas. A Warner deve estar feliz da vida que o ano difícil que teve até então pode ser transformado com a bilheteria graúda que Barbie promete alcançar. Com o abraço da crítica ao imaginativo trabalho de Gerwig, não seria surpresa caso o filme aparecesse forte no Oscar do ano que vem. E quem estava na dúvida se Barbie Girl, do Aqua, daria as caras na trilha sonora, depois de ter sido reportado que a faixa não seria inclusa, fique sabendo que ouvimos, sim, a canção, mas em uma versão remixada, durante os créditos finais.
BARBIE
EUA – 114 min – Comédia
Dir.: Greta Gerwig
Rot.: Greta Gerwig, Noah Baumbach
Com Margot Robbie, Ryan Gosling, America Ferrera, Michael Cera, Ariana Greenblatt, Kate McKinnon, Issa Rae, Hari Nef, Alexandra Shipp, Emma Mackey, Sharon Rooney, Ana Cruz Kayne, Dua Lipa, Nicola Coughlan, Ritu Arya, Marisa Abela, Kingsley Ben-Adir, Simu Liu, Scott Evans, Ncuti Gatwa, Rob Brydon, John Cena, Jamie Demetriou, Rhea Perlman, Helen Mirren e Will Ferrell
Cotação: 8