A vontade de realizar um filme leve como O Crime é Meu surgiu na cabeça de François Ozon enquanto vivia os piores dias da pandemia. Como bem sabemos, eram tempos sombrios e o cineasta pensou em revisitar um estilo de cinema que já havia empregado em filmes como 8 Mulheres (2002) e Potiche: Esposa Troféu (2010). Nesses trabalhos, além do tom cômico ser mais acentuado, o cineasta trabalhava com atrizes como protagonistas, como menciona em entrevista para a Variety em janeiro de 2023. “Em 8 Mulheres, era sobre a renúncia ao patriarcado. Em Potiche, a ascensão do matriarcado, mostrando a trajetória ascendente de uma mulher na política”. Sobre O Crime é Meu, Ozon resume que sua obra é sobre o triunfo da sororidade.
Roteirizado pelo próprio Ozon, baseado livremente na peça de George Berr e Louis Verneuil – que já foi adaptada ao cinema algumas vezes, inclusive por Hollywood, em Confissão de Mulher (1937) e A Mentirosa (1946) – O Crime é Meu é ambientado nos anos 30, na França. Acompanhamos a inusitada trajetória da atriz Madeleine Verdier (Nadia Tereszkiewicz) e de sua amiga, a advogada Pauline Mauléon (Rebecca Mader). Elas moram em um apartamento pequeno, alugado a duras penas e com as contas atrasadas. Ambas não têm onde cair mortas, mas uma oportunidade se apresenta para Verdier quando ela se encontra com o produtor Montferrand (Jean-Christophe Bouvet). Acreditando que ganharia o papel principal em um novo espetáculo, ela é convidada para fazer o papel da faxineira – desde que aceite os avanços sexuais do homem. Ela é agarrada pelo produtor, consegue se desvencilhar depois de dar uns sopapos no sujeito e vai para casa. Isso tudo é reportado para sua amiga Pauline, que estava tentando convencer seu inquilino a perdoar parte da dívida do aluguel.
Minutos depois, o inspetor Brun (Régis Laspalès) bate à porta das moças investigando o assassinato de Montferrand, para a surpresa de Madeleine. Ela nega veementemente o crime, mas é levada para o juiz Gustave Rabusset (Fabrice Luchini), que tem certeza de que a moça cometeu o feito. Quando Madeleine percebe que pode sair do crime sem punição, por ser legítima defesa, ela resolve assumir a ação e chamar Pauline para ser sua advogada. Agora, as duas terão de provar ao júri que o crime foi cometido pela moça e que, claro, as razões foram nobres – ela teria matado o homem para se manter pura para seu futuro noivo, o herdeiro da empresa de pneus Bonnard, André (Édouard Sulpice). Tudo correria bem, se a assassina real, a atriz Odette Chamette (Isabelle Huppert) não aparecesse do nada querendo um pouco dos holofotes que Madeleine recebeu.
O Crime é Meu se mostra uma comédia farsesca deliciosa, muito reverente ao cinema dos anos 30/40 de Hollywood. Ozon diz ter tomado alguma inspiração nos diálogos rápidos dos filmes de Ernst Lubitsch – mas é inegável que Billy Wilder também serve como referência (um cartaz do filme Semente do Mal, 1934, aparece gigantesco na tela, quando as jovens protagonistas vão ao cinema). Além dessas homenagens, o cineasta francês ainda presta tributo ao cinema mudo – nas cenas em que vemos o crime sendo imaginado pelos interlocutores do momento, a ação perde o som e as cores, se tornando um exemplar de filmes realizados antes dos anos 30. A personagem de Isabelle Huppert é uma atriz do cinema mudo, modelada como uma versão de Sarah Bernhardt, mais um elemento que serve como reverência ao passado. Isso sem contar na própria ambientação do longa, com uma luxuosa recriação de época nos mostrando a França de quase um século atrás.
É possível que fãs do cinema francês procurem O Crime é Meu por conta de Isabelle Huppert ou Fabrice Luchini, dois astros de primeira grandeza daquele país, mas encontrarão em Nadia Tereszkiewicz e Rebecca Mader uma ótima dobradinha, que toma conta de quase todo o filme. As duas eram promessas quando das gravações do longa, mas já encontraram outras produções para brilhar, como A Última Rainha (2022) e A Garota Radiante (2021). Aqui, as duas têm espaço para conceberem personagens espertíssimas, que conseguem transformar situações problemáticas em oportunidades. Luchini (que já havia trabalhado em outras ocasiões com Ozon, incluindo o citado Potiche) entra na trama para ser o homem da justiça, mas tem uma maneira bastante particular de usar o termo. Muitas das melhores piadas da trama são dele – com destaque para o hilário interrogatório que faz com seu amigo Fernand Palmarède (Dany Boon). Huppert entra na trama depois de uma hora de ação já desenrolada e vira a história ao avesso, como um tufão. De roupas e cabelos marcantes e uma segurança que só as estrelas do passado possuíam, a exagerada Odette Chamette dá uma injeção de vida ao filme em sua segunda metade. Ozon e Huppert voltam a trabalhar juntos depois de 20 anos, quando fizeram seu inesquecível 8 Mulheres.
Com uma trama cheia de idas e vindas deliciosas, com a esperteza sendo um dos principais predicados que uma pessoa pode ter naquele universo, O Crime é Meu guarda bons momentos até seu desfecho, com a participação divertidíssima do veterano André Dussollier, como o futuro genro de Madeleine. A mudança de espírito que ele tem para com sua nora é daquelas transformações que apenas uma quantia interessante pode realizar. Para quem quiser se divertir com uma boa comédia à francesa, este longa é uma recomendação e tanto.
O CRIME É MEU
MON CRIME
FRA – 102 min – Comédia
Dir.: François Ozon
Rot.: François Ozon, baseado na peça de Georges Berr e Louis Verneuil
Com Nadia Tereszkiewicz, Rebecca Mader, Isabelle Huppert, Fabrice Luchini, Dany Boon, André Dussollier, Édouard Sulpice, Régis Laspalès, Olivier Broche, Félix Lefebvre
Cotação: 9