Por Rodrigo de Oliveira
Nesta altura do campeonato, é correto pressupor que se não todas, a maioria das animações clássicas da Disney ganhará remakes com atores em carne-e-osso. A fórmula se provou bem-sucedida financeiramente e conta com alguns êxitos artísticos. Necessárias ou não, isso pouco importa para a Disney, utilizando sua valiosa propriedade intelectual para faturar em um oceano de opções de sucesso no passado. É notável que existem duas vertentes nestas recriações. Em uma, os realizadores ficam totalmente reféns do original, com pouco espaço para algo novo – O Rei Leão, de 2019, talvez seja o melhor exemplo do engessamento. Em outra, é possível brincar mais com a obra e até subvertê-la, como provou ser possível os longas que jogavam luz em vilãs clássicas como Malévola (2014) ou Cruella (2021) e, em certo grau, Aladdin (2019), que pegou a trama original e incluiu várias novidades. Das animações Disney das últimas décadas, A Pequena Sereia talvez fosse a que mais merecia uma atualização. Curiosamente, o diretor Rob Marshall e o roteirista David Magee mexem pouco no núcleo dessa fantasia, entregando uma obra bastante reverente ao original, felizmente não descartável por conta dos talentos envolvidos.
A trama é basicamente a mesma da animação. A jovem Ariel (Halle Bailey) é uma sereia cheia de curiosidade sobre o mundo externo. Ela deseja sair do mar e aprender mais sobre os humanos, mas é proibida categoricamente pelo seu pai, o rei dos mares Tritão (Javier Bardem). Ao lado de seu amigo, o peixe Linguado (Jacob Tremblay), Ariel costuma buscar por objetos de naufrágios para entender um pouco mais do mundo em terra firme – para tanto, ela tem a ajuda da ave Sabidão (Awkwafina), que nem sempre tem a melhor das respostas sobre alguns itens bem comuns. Quem está constantemente por perto é o caranguejo Sebastião (Daveed Diggs), mandado por Tritão para cuidar de Ariel. Certo dia, fogos de artifício chamam a atenção da pequena sereia, que se aventura a colocar a cabeça para fora da água para observar. No navio, ela enxerga o príncipe Eric (Jonah Hauer-King), um impetuoso marinheiro que logo lhe tira o fôlego. Pouco tempo depois, uma tempestade coloca a vida do rapaz em risco e Ariel decide salvá-lo. Eric não consegue observar direito quem o ajudou, mas ouve um belo canto. A partir dali, o príncipe tenta procurar a tal jovem. No mar, Úrsula (Melissa McCarthy), a bruxa tia de Ariel, propõe um pacto para a sereia: em troca de sua voz, ela lhe dará três dias para conquistar Eric em terra firme. Mas se até o final deste período, o rapaz não a beijar, Ariel ficará sob o poder da tia. Conseguirá ela encontrar seu amor e conquistá-lo sem poder utilizar sua voz?
Impossível não se apaixonar por Halle Bailey com sua performance calorosa como Ariel. A jovem estrela tem poder na voz para encarar uma canção difícil como Part of Your World, fazendo parecer incrivelmente fácil chegar às notas que requerem maior fôlego. Mas é na trama romântica que Bailey se mostra ainda mais certeira, nos fazendo acreditar naquela paixão arrebatadora que leva sua personagem a um pacto sinistro. Melissa McCarthy se diverte como Úrsula, conseguindo até fazer graça em um momento ou outro – algo que faltava à vilã original – enquanto Javier Bardem traz as duas faces de Tritão de forma correta, com a rispidez e severidade de um pai preocupado se chocando com a doçura de um homem que ama sua filha. Quanto ao elenco de vozes, Jacob Tremblay não tem dificuldades em fazer de seu Linguado um peixe adorável, enquanto Daveed Diggs tem mais trabalho por substituir uma performance memorável de Samuel E. Wright como Sebastião. Ainda assim, o resultado é melhor do que o esperado – além de bom cantor, Diggs é um ótimo dublador, sendo um dos destaques da animação Central Park, na Apple TV+.
A direção de arte é rica em detalhes e emula o desenho animado sempre que pode. Desde as vestimentas dos marujos do Principe Eric, até o espaço em que Ariel guarda suas relíquias, sempre é possível enxergar algo da animação nas pequenas coisas. Tritão ganha uma armadura e as sereias vestimentas menos cartunescas. Quanto aos efeitos visuais, não perdem nada para o que a Disney tem produzido atualmente. Sabe-se que existe um gargalo apertado entre as várias produções que o estúdio faz simultaneamente, mas A Pequena Sereia não parece ter sofrido muito, principalmente nas cenas embaixo d’água. O desfecho com a Úrsula gigante (que imaginávamos que seria trocado por algo menos extravagante) é o menos crível, no entanto.
Agora, vamos entrar em alguns spoilers, portanto caso não tenha visto a versão em live action, pule o parágrafo. As poucas diferenças na trama de A Pequena Sereia para o original não são lá muito substanciais para a história. Talvez a maior seja o fato de Eric ter uma mãe ativa na história, a Rainha Selina (Noma Dumezweni), com o rapaz tendo sido adotado quando criança. Por um momento, imaginamos que isso vai ser desenvolvido de tal maneira que em vez de Ariel abandonar o mar como vemos na animação, Eric é quem deixaria a terra firme – por ter sido adotado, talvez ele fosse um ser do mar perdido? Mas não é isso que acontece, com o desfecho seguindo bem de perto o original. Uma boa diferença é o fato de Ariel ser a responsável direta pela derrota de Úrsula (no desenho, é Eric), que aqui é sua tia, por algum motivo que não fica claro. Algumas letras de música mudaram, mas isso não é nada problemático. Lin-Manuel Miranda, depois do sucesso de Hamilton e da animação Encanto, foi chamado para compor letras para novas músicas e se sai bem com Wild Uncharted Waters (a canção de Eric) e For the First Time (uma nova para Ariel), enquanto a estranha The Scuttlebutt (cantada por Awkwafina) soa muito derivativa dos raps com os quais Miranda ficou famoso.
Para os fãs da animação, o novo A Pequena Sereia traz poucas novidades, sendo bastante respeitoso ao material original. Rob Marshall poderia ser mais econômico, é verdade. A trama da animação fecha com pouco menos de 90 minutos, enquanto o longa em live-action bate as duas horas. Mesmo não acertando sempre, Marshall mostra que seu passado na franquia Piratas do Caribe o ajudou a errar menos aqui. Felizmente, Halle Bailey é motivo mais do que suficiente para conferir essa repaginação, respondendo de maneira muito positiva e com seu talento os inúmeros haters que se levantaram contra sua escalação de início. Estes cairão no esquecimento, enquanto a performance da jovem estrela estará imortalizada em uma grande produção Disney, como deveria ser.
A PEQUENA SEREIA
THE LITTLE MERMAID
EUA – 135 min – Fantasia, Musical
Direção: Rob Marshall
Roteiro: David Magee
Com Halle Bailey, Jonah Hauer-King, Daveed Diggs, Awkwafina, Jacob Tremblay, Noma Dumezweni, Art Malik, Javier Bardem e Melissa McCarthy
Cotação: 7
Leia o texto sobre a animação A Pequena Sereia (1989), assinado por Rodrigo de Oliveira e publicado no site Papo de Cinema, clicando neste link.