Por Rodrigo de Oliveira
No mundo de Beau Wasserman, uma ida ao mercado do outro lado da rua de seu prédio pode ser uma jornada ao desconhecido, em que ele arrisca ser espancado, roubado ou até mesmo morto. É uma realidade em que a bondade de estranhos soa tão perturbadora quanto a maldade, em que uma condição genética confunde o gozo com a morte, em que uma peça de teatro tende a se transformar em uma viagem animada e que o amor maternal é tão gigantesco que se torna esmagador. É neste lugar difícil em que vive o paranoico Beau, um homem com tanto medo que, simplesmente, não consegue existir, funcionar, viver. Saída da mente do criativo (e perturbador) Ari Aster (diretor dos sucessos Hereditário, 2018, e Midsommar, 2019), Beau tem Medo é uma viagem surreal, uma comédia sombria e um pesadelo filmado – tudo isso em pouco menos de três horas de duração. Embora pudesse ser encurtado com a extirpação de alguns trechos menos inspirados, a jornada acaba sendo válida, com o tempo investido pelo espectador recompensado por uma experiência sui generis.
A ideia para Beau tem Medo existe na cabeça de Aster há mais de uma década. Ele, inclusive, filmou o conceito seminal dessa história no curta-metragem Beau, lançado em 2011. O roteiro do longa foi escrito como uma comédia e permaneceu dormente por muito tempo. Vieram as produções de horror Hereditário e Midsommar antes, para só assim Aster se sentir preparado para retornar aquela história. Joaquin Phoenix se juntou ao cineasta no projeto quando se encantou pelo roteiro e teve ideias para desenvolver aquele personagem tão distinto. Para arredondar o elenco, o diretor contou com atores de renome como Amy Ryan, Nathan Lane, Patti LuPone, Stephen McKinley Henderson e Parker Posey. Como se trata de uma história episódica, era importante que a cada momento da trajetória de Beau, os atores que o acompanhassem fossem páreo para o talento do protagonista.
A trama não poderia iniciar mais do começo: o nascimento de Beau. O momento já mostra a atitude opressora de sua mãe Mona (vivida quando jovem por Zoe Lister-Jones e, idosa, por LuPone), que não deixa os médicos trabalharem em paz enquanto tentam realizar o parto. Quase 50 anos depois, encontramos Beau (Phoenix) na terapia, falando sobre a viagem que fará para reencontrar a mãe. O terapeuta (Henderson) faz perguntas diretas, que tiram Beau do prumo – uma delas, se ele desejava que sua mãe tivesse morrido no lugar do pai. A ausência paterna é algo que pesa naquele homem, ainda mais depois que ele soube como seu pai faleceu, no momento do clímax na única noite de amor entre ele e Mona. Beau mora em um prédio decrépito em um bairro perigosíssimo, temendo sair para qualquer coisa. No dia em que irá viajar, ele se atrapalha e tem sua chave e mala roubadas, tendo a desculpa perfeita para não sair de casa. Ao menos, é isso que sua mãe acredita que ele inventou. Depois de perder o controle do seu apartamento para uma turba que a invade após um descuido, Beau descobre que sua mãe morreu – decapitada por um lustre que a atingiu. Desesperado, ele precisa se deslocar até a cidade onde ela morava. Mas os obstáculos que se apresentam seriam intransponíveis para o medroso Beau?
A sinopse pode parecer grande, mas não dá conta nem da primeira meia hora da história. Para melhor aproveitar Beau tem Medo, faz diferença saber o mínimo possível da trama. O que é importante saber de antemão é que Ari Aster trabalha em um registro nada naturalista. Ele criou um mundo exagerado, onde tudo que acontece em nossa realidade acontece lá, mas em um volume extremo. Portanto, se a nossa cidade é problemática por conta da violência, a cidade de Beau é tão extrema que é necessário correr como se não houvesse amanhã apenas para chegar no prédio. Está claro que estamos em um realismo mágico – e alguns trechos e desdobramentos da história pendem mais para o fantástico do que poderíamos prever.
Cada capítulo da trama parece ter um feeling diferente, com o primeiro sendo bastante kafkiano e extremamente claustrofóbico. O segundo, com a família vivida pelos ótimos Nathan Lane e Amy Ryan, parece um pesadelo saído dos quadros de Norman Rockwell, no qual uma família perfeita esconde problemas referentes ao luto e a desconexão entre pais e filha. Um momento teatral traz um verniz de artes plásticas para a trama, com a animação conversando com as cenas em live-action com beleza ímpar, enquanto um flashback em um cruzeiro nos coloca em um sonho difuso, em que Beau é interpretado pelo jovem Armen Nahapetian, e a produção parece brincar como se o rapaz fosse criado por efeitos visuais, uma versão em inteligência artificial de Joaquin Phoenix (o que não é o caso).
Caso você tenha chegado até aqui sem ter visto o filme, recomendamos que deixe o texto de lado para seguir mais tarde, após tê-lo assistido. Quando Beau finalmente chega na casa de Mona, parece que estamos vendo o prelúdio de Psicose (1960) – uma maneira bastante rica de mostrar o que Norman Bates sofreu nas mãos da mãe para fazer o que fez no clássico longa de Alfred Hitchcock. Mas as teias da aranha de Mona, interpretada com estudado exagero por Patti LuPone, são ainda mais extremas. Controle é a palavra-chave e notaremos que as várias mortes de Mona nunca parecem ser definitivas. Beau, por sua vez, é uma pilha de nervos em pessoa, alguém que teme tudo – principalmente decepcionar a mãe – e se entrega a uma vivência sem prazeres ou emoções, protegido (ou preso) pelas garras de Mona. Phoenix acerta desde o início, tanto na caracterização do personagem quanto em sua expressão corporal e voz fraca. O medo é tamanho que parece que as cordas vocais de Beau estão sempre apertadas, sufocadas por suas ansiedades.
Algumas invencionices não funcionam a pleno, é verdade. O trecho teatral é longo demais e talvez fosse o ponto mais fácil de cortar caso Aster quisesse manter seu filme no reino das duas horas. O desfecho tem exageros ainda maiores – a revelação do pai é forçadíssima, parecendo extraterrestre até mesmo para um filme tão extravagante. E a cena final, do julgamento, soa como uma mistura de Um Visto para o Céu (1991) com O Show de Truman (1997), no qual vemos Beau sendo julgado por uma vida nada extraordinária.
Em suma, Beau tem Medo é uma experiência realmente diferente. Quem curtiu o tom offbeat de Midsommar provavelmente vai se divertir, embora sejam filmes bem diversos. Enquanto o folk horror de Aster trazia todo um visual iluminado para um gênero que tende a ser sombrio por natureza, Beau tem muito mais comédia e drama para se escorar. Existe horror, sim, e as cenas com mortes e defuntos se mantém muito brutais e reais. Mas o cineasta aqui parece mais interessado em costurar as angústias, culpa, medos e pirações de sua cabeça em um pacote surreal e onírico. Por mais longo que possa ser, está claro que Beau tem Medo é daqueles filmes que ganham muitos pontos ao serem assistidos mais de uma vez, para que seja possível absorver o máximo que Aster divide com a plateia.
FICHA TÉCNICA
BEAU TEM MEDO
BEAU IS AFRAID
EUA – 179 min – Drama, Comédia
Direção e Roteiro: Ari Aster
Com Joaquin Phoenix, Patti LuPone, Amy Ryan, Nathan Lane, Kylie Rogers, Denis Ménochet, Parker Posey, Zoe Lister-Jones, Armen Nahapetian, Julia Antonelli, Stephen McKinley Henderson, Richard Kind
Cotação: 8
Midsommar: O Mal Não Espera a Noite, de Ari Aster, foi assunto do Almanacast #13. Ouça via Spotify neste link.