Viola Davis é gigante. A atriz consegue encarar qualquer papel que seja com a mesma força, a mesma qualidade, o mesmo comprometimento. Lembre da paleta imensa de personagens que ela defendeu nos cinemas e na televisão e perceba o quanto ela mergulha em papéis tão distintos quanto em Dúvida (2008), Histórias Cruzadas (2011), How to Get Away with Murder (2014-20), Esquadrão Suicida (2016), Um Limite Entre Nós (2016), A Voz Suprema do Blues (2020) e A Primeira-Dama (2022). Mesmo em filmes ou séries aquém do seu talento, ela sempre trouxe algo interessante para a tela. Em A Mulher Rei, a estrela vencedora do Oscar toma para si o papel de uma heroína de ação, em uma produção que mistura melodrama, aventura e reconstituição histórica para contar a trajetória das Agojie, exército formado apenas por mulheres no reino Daomé, na África dos anos de 1800. Olhe para a tela e falhe ao tentar não encontrar verdade nos olhos de Davis. Generosa, a atriz não só concebe uma personagem ímpar, como dá espaço mais que suficiente para suas parceiras brilharem, como é o caso de Lashana Lynch e Thuso Mbedu.
O caminho para A Mulher Rei virar filme é interessante. A atriz Maria Bello visitou Benim (local atual onde se situava o reino Daomé) e ficou fascinada com a história das Agojie. Ao lado de Cathy Schulman, ela começou a produzir o longa e, em 2015, foi um tanto ousada ao oferecer o papel central de seu filme para Viola Davis – no palco, enquanto chamava a atriz para receber um prêmio em Los Angeles. Infelizmente, em Hollywood (e em tantos outros lugares), uma história protagonizada por mulheres negras não ganha o sinal verde logo de cara. Foram anos de pré-produção e tentativas para conseguir financiamento e um estúdio apto a realizar essa trama. Nesse interim, Lupita Nyong’o chegou a ser escalada para o filme, mas precisou deixar a produção, sendo substituída por Mbedu. E a diretora Gina Prince-Blythewood entrou a bordo do projeto, depois de ter sido convidada para roteirizar (sem poder se comprometer por outros trabalhos). No fim das contas, Blythewood ajudou no script, assinado por Dana Stevens.
Quem conferir A Mulher Rei e encontrar similaridades com Pantera Negra (2018) e as Dora Milaje não estará errado. As mulheres guerreiras do longa da Marvel foram baseadas nas Agojie. Curiosamente, apenas depois do sucesso do herói de Wakanda é que A Mulher Rei teve maiores chances de ver a luz do dia. A Tristar Pictures se envolveu no projeto e arrolou um orçamento de US$ 50 milhões. As filmagens foram realizadas na África do Sul, com elenco constituído basicamente por mulheres negras – Viola, também produtora, lutou por escalar atrizes de tom de pele mais escuro – e com equipe atrás das câmeras formado por mulheres e de diversas partes do mundo. O resultado está na tela, um filme de qualidade inegável e de história envolvente.
Na trama, acompanhamos a trajetória das Agojie, exército do rei Ghezo (John Boyega). Uma guerra se aproxima e o treinamento de novas guerreiras está sendo realizado naquele momento. A general Nanisca (Davis) conta com sua braço direito Izogie (Lynch) e sua conselheira Amenza (Sheila Atim) para comandar aquele exército. Quem é novata no lugar, entregue pelo pai por não obedecer a suas ordens, é a jovem Nawi (Mbedu). Ela logo se mostra alguém capaz de guerrear, mas não tanto de seguir os comandos de suas superiores. Neste cenário, Nanisca tenta convencer o rei de que o mercado de escravos, uma das principais fontes de renda do reino, deveria ser abandonado. Ghezo não tem certeza a respeito destes planos, mas promete pensar no assunto. O Império Oyo, inimigos dos Daomé, não pretendem largar essa função tão facilmente. Naquele momento, o português Santo Ferreira (Hero Fiennes Tiffin) e o meio brasileiro, meio Daomé Malik (Jordan Bolger) estão na região para transportar novos escravos. Malik conhece Nawi e os dois logo se afeiçoam. Mas um relacionamento está fora de questão não só pelos objetivos diversos de ambos, mas pelas regras das Agojie. Quem entra no exército não pode se casar ou ter filhos. Logo descobriremos que a própria Nanisca teve uma filha no passado, vítima de abuso sexual do hoje comandante dos Oyo, Oba (Jimmy Odukoya) – e que aquelas feridas do passado estão longe de serem cicatrizadas.
Chama a atenção logo de início o desenho de produção de Akin McKenzie e os figurinos assinados por Gersha Phillips – esta última, aliás, deve ser um nome lembrado pelo Oscar do ano que vem. As roupas das guerreiras são singulares, com a mistura perfeita entre segurança (as armaduras têm de protegê-las, afinal de contas) e beleza (os búzios espalhados pelas indumentárias nos sugerem que cada guerreira orna sua roupa, uma pequena, mas importante questão de personalidade em um exército que deve agir como igual). As cenas de ação são impressionantes e mostram que o elenco todo teve um treinamento constante para dar conta dessa tarefa.
As atuações são todas muito boas, mas a trinca central formada por Viola Davis, Thuso Mbedu e Lashana Lynch ganham o destaque. E cada uma tem um estilo bem diferente de defender suas personagens. Davis é imponente, mas também mostra vulnerabilidade em cenas-chave. Mbedu investe na impetuosidade para conquistar seu espaço, uma jovem mulher dona de suas vontades, mas que precisa saber baixar a cabeça para suas superiores. E Lynch é, ao mesmo tempo, uma espécie de alívio cômico (o máximo que poderia em um ambiente como aquele), mas, principalmente, uma pessoa com quem se pode contar sempre. Ela é o alicerce daquele exército.
Alguns pontos do roteiro, mais melodramáticos, poderiam ter ficado de fora, mas não incomodam tanto como imaginaríamos. Não entraremos em spoilers, mas a ligação entre algumas personagens soa improvável. De qualquer forma, é um pequeno porém em uma produção maiúscula, arrebatadora. O terço final é tão intenso que é inevitável sair do cinema com empolgação. Espera-se que A Mulher Rei faça uma boa campanha nos cinemas para que seja mais um capítulo importante na representação da população negra nas telas. E que venham mais histórias como essa, realizadas e estreladas por talentos como o de Viola, Lynch, Mbedu e Blythewood. O cinema e os espectadores agradecem.
A MULHER REI (THE WOMAN KING)
EUA/Canadá – 122 min – Drama, Ação
Direção: Gina Prince-Blythewood
Roteiro: Dana Stevens | História de Dana Stevens e Maria Bello
Com Viola Davis, Thuso Mbedu, Lashana Lynch, Sheila Atim, John Boyega, Hero Fiennes Tiffin, Jimmy Odukoya, Masali Baduza, Jayme Lawson, Adrienne Warren, Chioma Antoinette Umeala, Jordan Bolger
Cotação: 9
Mais sobre Viola Davis? A atriz aparece nas páginas da Almanaque21 nas edições Oscar 2017, Batman e Oscar 2021.