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Casa de Antiguidades

Casa de Antiguidades é, sem sombra de dúvidas, um filme ambicioso. Em pouco mais de 90 minutos, o diretor João Paulo Miranda Maria aponta sua câmera para discussões atuais, ambientando a ação em um espaço aparentemente perdido no tempo, com pitadas de realismo fantástico e um quê de folclore. Protagonizado pelo veterano Antônio Pitanga, em atuação destacada, o longa é a estreia do cineasta no formato, depois de ter lançado o curta-metragem A Moça que Dançou com o Diabo (2016), exibido e premiado no Festival de Cannes. O tradicional evento cinematográfico francês também selecionou Casa de Antiguidades, mas por conta da pandemia, as exibições e a competição foram canceladas. Como teria se saído essa coprodução Brasil e França na croisette? Nunca saberemos. O que ficou claro é o quão polarizado o público se mostrou a respeito da obra. Algo interessante para o jovem cineasta, que mais de uma vez afirmou que faz cinema para incomodar.

Nos primeiros minutos do filme, vemos alguém vestindo roupas de proteção, fazendo a troca das luvas do uniforme em uma espécie de depósito. Na parede, ao fundo, a frase “atenção aos detalhes” pode passar despercebida para grande parte do público. Funciona, claro, como um recado para os funcionários daquela empresa de laticínios. Mas também é um lembrete para os espectadores. Fique atento.

Na trama, Pitanga vive Cristovam, um senhor idoso de Goiás que se vê realocado para o sul do Brasil, quando a empresa em que trabalha para lá se muda. Comunidade de colonização austríaca, os habitantes não enxergam com bons olhos a presença daquele homem negro. As cruéis crianças do vilarejo, inclusive, ensaiam atirar no velho com sua arma de pressão. Terminam por deixar um cãozinho em estado deplorável, com Cristovam se vendo obrigado a matar o bicho. Os dias desenrolam e um casebre antigo a caminho de sua casa passa a lhe chamar a atenção. Cada vez que ele vai até lá, novos objetos aparecem. Como se o lugar tivesse algum tipo de consciência. Nesse interim, ele começa a se relacionar com uma colega de firma, Jandira (Aline Marta Maia), que tem uma filha, Jenifer (Ana Flavia Cavalcanti), que costuma aparecer no bar da região e virar a cabeça dos homens, o que se torna um incômodo para aquele senhor.

Antonio Pitanga em Casa de Antiguidades

Racismo, machismo, separatismo, capitalismo, colonialismo. Os “ismos” são vários em Casa de Antiguidades. Esse, inclusive, é um dos problemas do filme. Ao tentar abraçar o mundo e trazer muitas temáticas para a mesma trama, Miranda Maria termina por pulverizar as discussões. Impossível aprofundar cada um desses candentes temas em apenas 90 minutos, tendo uma história para contar e personagens para desenvolver. De qualquer forma, a ponta do iceberg que o diretor consegue apresentar tem bons momentos.

A começar pela cena de “diálogo” que abre o filme. Cristovam é chamado na sala do chefe. Este lhe explica o novo momento da empresa e que nessa crise, todos precisam sofrer o baque – o empregado, portanto, passará a receber menos pelo seu trabalho. A conversa por si só seria péssima. O detalhe é que ela é basicamente falada em outra língua. Kainz (Sam Louwyck), o chefe, fala boa parte do tempo em alemão. Sem compreender o que está sendo transmitido, Cristovam permanece em silêncio, com olhar cerrado, tentando absorver algo que seja do colóquio. Nessa primeira sequência, já vemos o bom uso da câmera, que se aproxima lentamente dos personagens, como se estivesse nos mostrando algo por trás das cortinas. Quer melhor exemplo do “funcionário negociando com o patrão”? Basta assistir os primeiros minutos do longa para entender como isso simplesmente não funciona.

Antonio Pitanga em Casa de Antiguidades

Por falar em câmera, a fotografia do francês Benjamín Echazarreta é bela e funcional -principalmente nos momentos em que a fantasia toma conta da trama. São nesses trechos em que os movimentos lentos e calculados que víamos nas cenas na fábrica ou na estrada transformam-se. De analítica, ela vira impressionista. Outro bom exemplo disso é uma das tantas sequências em que Jenifer está no bar, com sua jaqueta de onça. Os movimentos da atriz, com a câmera em suas costas, parecem prenunciar uma metamorfose.

Algo que intriga em Casa das Antiguidades é em que tempo a história se passa. Na primeira cena, podemos jurar que ela está fixada nos anos setenta – as roupas do chefe e de sua funcionária, vivida por Gilda Nomacce, além dos objetos de cena apontam para essa época. No vestiário da firma, as roupas dos funcionários e as tatuagens nos levam a crer que tudo se passa na atualidade. Os números 17 no casebre também sugerem isso. No entanto, os carros da rua e os pôsteres do bar estão mais para os anos 90 – o bar tem cartazes da Copa da Itália. Miranda Maria afirmou em entrevista para a Deutche Welle Brasil que queria deixar o espectador na dúvida a respeito disso, algo que ele consegue. Mas a resposta se encontra no calendário da casa de Jandira, onde podemos ver o ano de 2019. Interessante que o cineasta consiga embaralhar o tempo naquele local.

Mas se Casa de Antiguidades tem uma razão para existir é dar a Antônio Pitanga um grande papel aos oitenta anos de idade. Ele que estrelou grandes produções nacionais, tendo trabalhado com Anselmo Duarte (O Pagador de Promessas, 1962), Cacá Diegues (Ganga Zumba, 1963), Glauber Rocha (Barravento, 1962), entre tantos outros, merecia um personagem à altura de seu talento. Sua performance é tão gigante que acaba ficando maior do que o próprio filme. Isso ao interpretar um homem que, embora protagonista e vítima de preconceitos, também age de maneira incorreta. Ele mata, ele é violento. Algumas de suas ações são respostas ao seu ambiente. Outras, tem a ver com sua criação e educação. Por defender um homem falho e muito real, Pitanga engole a tela.

Antonio Pitanga em Casa de Antiguidades

Será fácil encontrar opiniões muito fortes para os dois lados a respeito deste longa-metragem de estreia de João Paulo Miranda Maria. Amor e ódio. Mas não foi isso que este escriba encontrou no longa. Nem tanto ao céu ou ao inferno. Existem muitas qualidades, mas também momentos que incomodam pela superficialidade. Por fim, o terceiro ato não consegue entregar a apoteose que o diretor parecia construir até então. Dito isso, ao menos Casa de Antiguidades alcança um dos objetivos claros de sua gênese: deixar alguma marca no espectador.

 

CASA DE ANTIGUIDADES
Brasil, França – 93 min – Drama
Direção e roteiro: João Paulo Miranda Maria
Com Antônio Pitanga, Ana Flavia Cavalcanti, Aline Marta Maia, Sam Lowyck, Gilda Nomacce, Soren Hellerup
Cotação: 6

Texto publicado originalmente na cobertura da Almanaque21 da Mostra de São Paulo 2020. Leia nossa edição digital completa neste link.