Você nunca assistiu a um filme do Homem-Morcego como esse Batman, de Matt Reeves. E não é questão de melhor ou pior do que as tantas outras produções de uma franquia que teve início em 1989, com a gótica visão de Tim Burton; viu um lado bastante colorido, reminiscente do seriado dos anos 60 nos filmes noventistas de Joel Schumacher; e colocou os dois pés no chão com a trilogia de Christopher Nolan a partir de 2005. O que está em discussão aqui é a maneira como a história é contada e que versão do herói estamos em contato. Nunca vimos, em carne-e-osso e na tela dos cinemas, o lado detetivesco do Cavaleiro das Trevas. Ao apostar em uma história de suspense, muito mais reverente à cinematografia de David Fincher do que a filmes de heróis, e abraçar o lado noir da aventura – temos até narração em voice over do protagonista, faltando apenas o ventilador no teto para ser um legítimo detetive dos anos 40 – Matt Reeves consegue destacar seu trabalho dos tantos outros que vieram antes.
Um dos acertos da DC/Warner foi desligar esse título do chamado DCEU – o universo estendido de heróis do estúdio. As produções interligadas da Marvel funcionam muito bem para a Casa das Ideias, mas é notável que a DC opera melhor quando trabalha suas aventuras de forma individual. Nada impede que este Batman encontre um Superman no futuro, mas a desobrigação de vincular o catálogo de heróis só fez bem à DC. Dessa forma, podemos ter, no mesmo ano, o Batman de Robert Pattinson existindo em um universo distinto dos vividos por Michael Keaton e Ben Affleck (que devem se encontrar em The Flash, 2021). Tudo na santa paz do multiverso, sem maiores problemas.
Antes de mais nada, importante tirar algo do caminho: quem temia a escalação de Robert Pattinson única e exclusivamente por conta de seu passado na franquia Crepúsculo, pode descansar o preconceito. Primeiro porque o ator já provou em produções interessantes ser muito mais do que um rostinho bonito, como suas parcerias com o diretor David Cronenberg, Cosmópolis (2012) e Mapas para as Estrelas (2014), ou sua ótima dobradinha com Willem Dafoe no soturno O Farol (2019), de Robert Eggers. Em Batman, Pattinson faz o primeiro Homem-Morcego que parece realmente vulnerável. Ele utiliza artimanhas inteligentes para levar medo aos vilões – como o fato de usar o batsinal para incutir desespero na bandidagem, que nunca sabe se ele está escondido nas sombras ou não. Ele parece um tanto desconfortável ao dividir o mesmo espaço com vários policiais em cenas do crime, como se entendesse o quão estranho é estar vestido daquela forma junto aos demais. Seus ideais de vingança ainda estão amadurecendo e ele percebe o quão nocivo este conceito pode ser, demonstrando que mesmo heróis podem errar, não importando suas intenções.
Como Bruce Wayne, Pattinson bebe na fonte do que Matt Reeves concebeu como um rock star recluso, um tipo Kurt Cobain que só se sente menos inadequado quando no palco – no caso de Batman, nas ruas, combatendo o crime. Uma performance convincente, que ainda ganha mais peso pela junção de um elenco cheio de nomes talentosos como Zoë Kravitz (dando uma repaginada muito bem-vinda à Mulher Gato), Colin Farrell (irreconhecível como o Pinguim), Jeffrey Wright (íntegro como o Tenente Gordon), Andy Serkis (mostrando o lado cerebral de Alfred), John Turturro (ameaçador com o mafioso Carmine Falcone) e, claro, Paul Dano (fazendo a versão mais assustadora do Charada já vista).
A trama se passa durante o segundo ano em que Bruce Wayne começou sua cruzada contra os criminosos de sua cidade. Um sujeito perigoso que atende pelo codinome Charada começa a tocar o terror em uma Gotham City decrépita. Ele executa o atual prefeito da cidade, Don Mitchell Jr. (Rupert Penry-Jones), poucos dias antes da eleição em que ele concorria para manter o cargo. No corpo da vítima, enrolada em fita tape, deixa uma mensagem cifrada em um envelope endereçado ao Batman. O Tenente Gordon chama o Homem-Morcego para o local e a polícia se mostra bastante avessa à presença de um justiceiro em seu meio. Mas só mesmo Batman (com a ajuda de seu fiel faz-tudo Alfred) conseguiria mesmo decifrar aquela mensagem, que parece dar dicas dos próximos passos do Charada. As pistas coletadas pelo Homem-Morcego o jogam para o submundo de Gotham, onde figuras poderosas agem sem muitas amarras. No clube Iceberg Lounge, comandado pelo mafioso Carmine Falcone, Batman tem uma conversa de perto com o Pinguim (também conhecido como Oz), braço direito do criminoso e um dos responsáveis pelo local. Lá, o herói repara na presença da atendente Selina Kyle e o fato de tê-la seguido até sua casa lhe dá mais algumas peças desse quebra-cabeça.
Sem maiores spoilers, é isso o que dá para falar sobre Batman. Matt Reeves capricha no clima opressor, fazendo do longa um misto entre suspense e filme de horror. A trilha sonora de Michael Giacchino ajuda nessa atmosfera, estando onipresente. As primeiras aparições do Morcegão, com ele se movimentando de maneira lenta, com passos pesados, o colocam no patamar de grandes monstros do cinema. É exatamente isso que aquele homem deseja: que seus inimigos o vejam como algo assustador. Quando a briga começa, Reeves mantém a câmera em planos longos, não cortando em golpes que poderiam esconder um trabalho feito ao meio. Aqui, notamos o esmero da equipe que cuida das coreografias e dos dublês. As lutas são duras e o Batman de Pattinson, embora tenha a política de não matar, não se esquiva de deixar marcas em seus algozes. Outras cenas de ação memoráveis: a perseguição de carros entre Pinguim e Batman é uma das melhores do filme, assim como a destruição que acontece em Gotham durante o terceiro ato.
Ainda sobre a trilha, o tema do Homem-Morcego parece carregar um pouco do DNA da Marcha Imperial de Star Wars, o leitmotif que sempre tocava quando Darth Vader entrava em cena – alguns mashups na internet surgiram, inclusive. Curioso que o tema do herói tenha algo semelhante com o do vilão de outro filme – mostrando, nem que seja de forma subliminar, que Batman é um personagem muito menos heroico. Inclusive, faltou uma boa fanfarra em algumas cenas em que o protagonista age como herói. Certamente foi algo estudado, que não existisse nada remotamente parecido com o que Danny Elfman ou Hans Zimmer fizeram nas encarnações anteriores. De qualquer forma, o uso de Something in the Way do Nirvana, em dois pontos importantes do longa, complementam bem a ideia de transformar Bruce Wayne em uma espécie de Kurt Cobain.
Com uma vertente mais pé no chão ainda do que os filmes de Christopher Nolan, Matt Reeves faz de seu Batman, ainda em começo de carreira, um herói dos mais falhos – e, por isso, muito interessante de acompanhar. Era temerário que tantos vilões fossem introduzidos em um mesmo filme, mas a boa notícia é que cada um ganha tempo para se desenvolver minimamente. Convenhamos que em quase três horas de história, se Reeves não conseguisse organizar suas ideias, o projeto todo implodiria. Dito isso, foi ótimo ver novas variações de vilões clássicos. Paul Dano vira a chave total para nível psicopata em suas cenas. A máscara adiciona um clima de mistério impactante, mas talvez o Charada seja mais assustador quando está de cara limpa, apenas vestindo seus óculos, olhando de forma não muito impressionada para seus captores na cena do café. O interrogatório entre Batman e o vilão é um dos grandes momentos do longa.
Aqui, entraremos em spoilers, portanto pule para o próximo parágrafo caso não queira saber segredos do filme. A cena em que um dos vilões mais clássicos de Batman é introduzido, interpretado por Barry Keoghan, não impressiona muito, na verdade. Vemos apenas o rosto do Coringa nas sombras e nem sua risada característica parece impactante. Uma pena, dada a importância de tal personagem – e algo que pode ser melhor trabalhado em sequências, visto que ali é um teaser para eventos futuros. As ótimas ideias do roteiro de Matt Reeves, como a maneira como Charada pretende seguir com seus planos mesmo preso, soam muito verdadeiras, atuais, diga-se. Hollywood tem sistemática e justificadamente colocado seguidores descerebrados como vilões. O fandom tóxico é perigosíssimo e temos observado isso aparecer mais e mais em grandes produções americanas.
A cena pós-créditos é um chiste, portanto quem não deseja ficar até o final da sessão não perderá algo de impacto. Tudo indica que esse é o primeiro capítulo de uma nova franquia do Homem-Morcego e, espera-se, nos próximos tenhamos mais das boas ideias de Matt Reeves, como um Alfred bem ativo e figura paterna para Bruce Wayne; o retorno da Mulher Gato seria bem-vindo, para que Zoë Kravitz pudesse desenvolver ainda melhor sua anti-heroína; e, claro, a introdução de outros vilões da galeria clássica do Batman – Coringa é uma possibilidade forte. Depois de esperar anos e anos por um filme detetivesco do herói criado por Bob Kane e Bill Finger, seria incrível assistir, em uma próxima aventura, algo ambientado dentro do Asilo Arkham, cenário de ótimos videogames do herói e que daria uma chance única de vermos uma lista grande de vilões enfrentando o Cavaleiro das Trevas. Fica aqui o desejo – e a dica – para a Warner/DC.
Batman
(The Batman)
EUA – 175 min – Suspense, Aventura
Direção: Matt Reeves
Roteiro: Matt Reeves e Peter Craig
Com Robert Pattinson, Zoë Kravitz, Paul Dano, Colin Farrell, Jeffrey Wright, Peter Sarsgard, John Turturro, Andy Serkis, Barry Keoghan, Jayme Lawson, Rupert Penry-Jones
Cotação: 9
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