Bob Cuspe: Nós Não Gostamos de Gente é tão criativo quanto poderíamos esperar de uma animação stop motion baseada livremente na obra de Angeli. Misto de documentário, ficção e piração, o filme é dirigido por Cesar Cabral – cineasta estreante em longas de animação, mas nada verde na obra do cartunista. São dele o curta Dossiê Rê Bordosa (2008) e a série animada Angeli The Killer (2017). Bob Cuspe pode ser considerado o ápice desse projeto de Cabral em adaptar os trabalhos de Angeli para o cinema. O filme fez bonito no Festival Internacional de Annecy, levando o prêmio Contra-champ, um dos principais do evento. Na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, foi selecionado para duas seções – Novos Diretores e Mostra Nacional – e Cabral ainda deu um curso sobre os processos de produção de um longa animado. Para quem perdeu na Mostra, a animação estreia dia 11 de novembro.
Mas do que se trata Bob Cuspe, afinal de contas? Importante saber que Angeli é um dos maiores cartunistas do Brasil, tendo criado personagens memoráveis como a já citada Rê Bordosa, os hippies Woody e Stock (que já ganharam seu filme solo nas mãos de Otto Guerra, em 2006), os Skrotinhos, Rhalah Rikota, o punk Bob Cuspe, entre muitos outros. Além de publicar suas tiras na Folha de São Paulo a partir dos anos 70, Angeli fez história ao lançar, na década de 80, a revista Chiclete com Banana, um marco do quadrinho nacional. Dar conta de tudo isso em um filme não é para qualquer um. Mas Cesar Cabral é criativo ao realizar um misto de documentário e ficção, ao gravar depoimentos de Angeli sobre sua carreira e personagens, e fazer todo ele em stop motion. No terceiro ato, descobrimos que existe uma razão para que tudo seja animado, mas deixaremos esse plot twist para que você descubra por si mesmo.
Na trama, Angeli está sendo entrevistado por um equipe de filmagens e isso faz com que ele relembre seus personagens mais famosos. Entre uma cena ou outra filmada para o doc, vemos Bob Cuspe (voz de Milhem Cortaz) querendo quebrar a escrita que tanto falam os fiéis Irmãos Kowalski (Paulo Miklos). O que acontece é que Angeli, assim como havia feito com Rê Bordosa nos anos 80, decidiu matar Bob Cuspe – assassinado e devorado por minions canibais com a cara de Elton John. Quando Bob consegue se livrar dessa ameaça, ele decide procurar seu criador e acertar as contas.
Curioso que em um intervalo tão pequeno, tanto Angeli quanto Laerte tenham ganhado (merecidas) animações em que o real e o imaginário se confundem. Em 2018, Otto Guerra comandou o ótimo A Cidade dos Piratas, colocando muito do processo de feitura da animação dentro da trama, com uma Laerte menos interessada em seus antigos personagens, os Piratas do Tietê. Aqui, Angeli não está muito longe disso. Ele se diz alguém diferente, não é mais o cartunista que criou a Chiclete com Banana e tantos outros personagens. Existe uma ruptura entre autor e obra que ambos artistas (amigos na vida real) experimentaram com a maturidade. Laerte, inclusive, aparece em Bob Cuspe e sua aparição é hilária – não só pelo texto, mas o boneco que foi feito com as feições dela é sensacional.
A animação, inclusive, é um capítulo a parte de Bob Cuspe. Os bonecos são de beleza ímpar (seguindo os traços de Angeli, mas ganhando uma tridimensionalidade que inexiste no cartum). A técnica de stop motion é, em sua essência, embasbacante. Os artistas conseguem transformar bonecos em criaturas vivas quase como mágica. E Cesar Cabral e sua equipe, com as limitações que bem sabemos o cinema brasileiro tem, não deixa a desejar para nenhuma grande produção gringa utilizando a mesma técnica. Coloque Bob Cuspe ao lado de qualquer filme da Aardman e note que estamos em pé de igualdade – e na criatividade da mistura de gêneros, bem à frente.
Com trilha sonora oitentista pinçada a dedo, com clássicos do Titãs, Mercenárias, Patife Band e Inocentes, além de uma faixa mais recente de Iggy Pop, Bob Cuspe é a obra rock’n’roll que melhor traduz o que são as criações de Angeli. As participações especiais de personagens famosos são pontuais, mas agregam muito ao todo – Rê Bordosa na banheira, com voz de Grace Gianoukas, tende a estar no topo da lista para quem é fã.
BOB CUSPE: NÓS NÃO GOSTAMOS DE GENTE
Brasil – 90 min – Documentário, Fantasia, Comédia
Dir.: Cesar Cabral
Rot.: Leandro Maciel, Cesar Cabral
Com as vozes de Angeli, Milhem Cortaz, Paulo Miklos, Laerte, Grace Gianoukas, André Abujamra, Beto Hora
Vencedor do Contra-Champ no Festival de Annecy
Cotação: 10
Crítica publicada originalmente em nossa cobertura da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Leia o especial aqui.